De Povos Indígenas no Brasil
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“O vento está forte, a chuva é muita... talvez o dilúvio nos alcance”

por Muru Wajãpi

Atualmente há muitas estações distintas. Ontem fez verão, o verão como tem desde antigamente. Em julho nós brocamos a roça e, agora, em setembro, nós derrubamos a roça. Agora, em setembro, a chuva cai. Chuva, chuva, chuva, não para não, é realmente o tempo de chuva. Antigamente não era assim, só hoje o tempo varia muito. Atualmente venta muito durante o verão, venta mesmo, por isso não acontece o verão. Há muito vento em setembro, antes não era assim, hoje é que venta muito, trovão também, tem muito trovão. Por isso os tempos de hoje são perigosos, eu tenho medo, talvez essa época acabe.

Por isso que eu me pergunto: “Por que a chuva não para?”. Talvez porque os não índios acabaram com a floresta para esses lados, lá para os lados das cidades eles deram fim à floresta. Por aqui, para os lados das roças, há floresta, ela existe como tem que ser, para o lado de nossas aldeias, há floresta, mas o não índio talvez tenha exterminado a mata. O vento está forte, a chuva é muita, mesmo no verão ela cai. O verão é curto nos tempos de hoje e a chuva está presente, durante as três luas a chuva cai. Com essa chuva, talvez o dilúvio nos alcance. Você sabe o dilúvio? A água vai subir, os peixes acabarão, isso talvez leve à extinção. Muito difícil, por que não sabemos o que fazer, como lidar. Talvez o dono da terra e o dono das árvores estejam furiosos, talvez nosso dono esteja irado também.

Porque a existência dos não índios não presta. Eles colocam cimento, fazem grandes estradas, isso deixa os donos furiosos. Também eles arrancam o que há dentro da terra, arrancam ouro, arrancam minério também, por isso talvez o dono da terra esteja irado. Com todos nós o dono da terra está irado, ele também quer nos extinguir, talvez digam aos outros donos. Por isso está assim, talvez seja por isso que o verão não acontece. Hoje cada vez mais eles fazem desse modo. Por que o tempo está assim? Talvez acabe, por isso está assim. Isso está claro no livro de Janejarã. É isso que eu estou pensando. Por isso eu me pergunto: “Por que o tempo está tão diferente?”. Diferente... A chuva não cessa, não para, não para mesmo. Talvez hoje, talvez no futuro, não vá mais ter verão, será a penúria, vai acabar o que há na floresta, não teremos o que comer. Sem poder fazer roça, nada vai crescer, será a penúria. Por isso eu me preocupo de verdade. Se a chuva não parar, vai ter a escuridão. Não era assim antigamente, no tempo da pupunha já tinha verão. Hoje não. O verão está assim, a chuva cai durante o verão, para mim não está bom. Por isso eu penso mesmo. É só isso!

É horrível. Vai nos agredir, nos matar. Pajé é quem sabe. Se pajé não souber que [o dono da terra] está nos agredindo, não ver que está nos matando... Mas quando vê, ele afasta os donos de nós, eles não nos matam, eles voltam [para seu lugar]. Se pajé não vê, eles vão acabar com todos, vai nos varrer, vai nos exterminar, vai nos varrer, como dizem os Wajãpi.

Mudanças no tempo, transformações nesta terra

por Dominique Tilkin Gallois e Joana Cabral de Oliveira, respectivamente, professora e doutoranda no Departamento de Antropologia da FFLCH-USP. Membros do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP

As reflexões de Seremete, da aldeia Ytape, e de Muru, da aldeia Kupa’y, sobre as alterações no regime das chuvas na região em que vivem, no noroeste do Amapá, remetem a um amplo espectro de experiências vivenciadas pelos Wajãpi acerca do que nós chamamos de mudanças climáticas. Mudanças que não são novas nem incompreensíveis para eles, considerando o profundo interesse e as finas observações que os Wajãpi costumam fazer a respeito das alterações no ritmo das estações, na cor do céu, na densidade das chuvas e neblinas, assim como na conformação das pedras, que tendem a amolecer e apodrecer, prefigurando a putrefação da terra...

Sinais que evidenciam uma desestabilização na relação entre domínios cosmográficos, podendo anunciar a destruição desta terra, que será, um dia, substituída por outra: nova, viçosa, dura e seca. É dentro desse antigo quadro de apreensão de experiências que hoje, os Wajãpi, como outros povos indígenas, aprendem a lidar como nossos modos de apreender mudanças climáticas, com a expectativa algumas vezes frustrada de encontrar nos nossos saberes um anteparo ao que eles já sabem há muito tempo: esta terra está apodrecendo.

Os depoimentos foram registrados em Wajãpi, em agosto de 2010, e traduzidos por Dominique Tilkin Gallois e Joana Cabral de Oliveira