De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Mariana Ciavatta Pantoja, 2007

Kuntanawa

Autodenominação
Onde estão Quantos são
AC 164 (Siasi/Sesai, 2014)
Família linguística
Pano
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Os Kuntanawa foram supostamente exterminados durante as perseguições armadas aos povos indígenas, as chamadas correrias, que acompanharam a abertura e a instalação dos seringais em todo o Acre, no final do século XIX e início do século XX. Os últimos descendentes conhecidos desse grupo são os membros de uma família extensa, conhecida até recentemente no alto Juruá como “os caboclos do Milton”, numa referência ao nome do seu patriarca (Milton Gomes da Conceição). A retomada de sua origem indígena, que resulta agora num profundo sentimento de indianidade, amparou-se na ascendência indígena e na história particular do grupo: a luta recente pela criação e manutenção da Reserva Extrativista do Alto Juruá; as relações de contato com povos indígenas vizinhos; a retomada de rituais com a bebida ancestral ayahuasca; e a percepção da discriminação étnica e política.  

Nome

Cidoca, filho caçula do casal Milton e Mariana, com sua esposa e filhos, é um dos principais caçadores (procurador) do grupo. Foto: Terri Valle de Aquino, em novembro de 2008, aldeia Sete Estrelas
Cidoca, filho caçula do casal Milton e Mariana, com sua esposa e filhos, é um dos principais caçadores (procurador) do grupo. Foto: Terri Valle de Aquino, em novembro de 2008, aldeia Sete Estrelas

Inicialmente, o etnônimo foi grafado Kontanawa, querendo com isso designar “povo do coco”. É assim também que a imprensa e os documentos governamentais se referem a eles. Em referências bibliográficas, o nome Kontanawa, ou Contanaua, é o mais citado (Tastevin, 1925 e 1926; Macedo, 1988; Aquino e Iglesias, 1994).

Mais recentemente, o grupo começou a pronunciar e grafar seu nome como Kuntanawa. O fato é que nas línguas Pano, mais especificamente o Hãtxa Kuin (falada pelos Kaxinawa), a palavra konta não teria qualquer sentido, e sim kunta, que se refere ao fruto “cocão” (Scheelea phalerata). Assim, Kuntanawa poderia ser traduzido como “povo do cocão”, ou “povo do coco”.  

Língua e situação sociolingüística

Os Kuntanawa, povo da família lingüística Pano, não falam mais sua língua indígena. Todos falam o português.

Esforços de reconstrução da língua têm sido realizados por meio de fragmentos ainda vivos na memória da matriarca do grupo, dona Mariana, do contato com outros povos de língua Pano (como os Kaxinawa e os Yawanawa) e da grafia que utilizam, e de canções ayahuasqueiras.

Localização e população

Na aldeia Sete Estrelas, onde residem seu Milton e dona Marianae seus filhos(as) e netos(as). Foto: Terri Valle de Aquino, em novembro de 2008
Na aldeia Sete Estrelas, onde residem seu Milton e dona Marianae seus filhos(as) e netos(as). Foto: Terri Valle de Aquino, em novembro de 2008

Os Kuntanawa vivem às margens do alto rio Tejo, no interior da Reserva Extrativista (Resex) do Alto Juruá, localizada no extremo oeste do estado do Acre, no município de Marechal Thaumaturgo. Estão progressivamente aglutinando-se em aldeias, sendo a principal delas conhecida como Sete Estrelas.

Esse grupo tem pleiteado o seu reconhecimento étnico e a identificação e delimitação de sua Terra Indígena, que se sobrepõe a uma porção da Resex acima referida.

Os Kuntanawa foram estimados, no ano de 2008, em 400 indivíduos.

Re-conhecendo as origens

Caboclos e cariús

O mito fundador da parentela desde sempre, e hoje mais do que nunca, está nos relatos de dona Mariana sobre a captura de sua mãe Kuntanawa (dona Regina) nas matas do rio Envira, no início do século XX. A dimensão indígena foi herdada e reapropriada pela família de seu Milton e de dona Mariana ao longo de sua história e de sua formação como um coletivo.

Em toda a região, pessoas com uma ascendência étnica diferenciada – índios e brancos, também diferenciados internamente – atravessaram o século XX encontrando-se, guerreando entre si, temendo-se, trabalhando uns para os outros como fregueses e patrões, casando entre si, relacionando-se como vizinhos, parentes e compadres. Foi nesse contexto que surgiu a denominação caboclo.

No Estado do Acre, diferentemente do Amazonas, o termo caboclo é sinônimo de índio. Mas, mais do que isso, remete aos padrões de interação que marcaram a constituição da sociedade de seringal e que puseram em relação grupos que se reconheciam como distintos. O nome caboclo remete à identificação étnica operacionalizada num contexto de mistura e dominação.

Nesse sentido, embora o termo seja usado correntemente, muitas vezes até pelos próprios índios, ele pode encerrar um conteúdo pejorativo, associado ao não-trabalho, à sujeira, ao não-confiável, e seu uso pode ser feito para desqualificar ou discriminar uma pessoa ou grupo.

A cabocla Regina, heroína dos Kuntanawa, integrou-se à sociedade de seringal, casou-se sucessivamente com vários seringueiros, morou e viveu com eles, mas nunca abandonou sua herança indígena, que legou à sua filha Mariana. Ficou conhecida no rio Jordão, onde morou desde que veio do Envira, como uma excelente parteira e conhecedora de remédios da mata, o que era atribuído a sua origem indígena.

Seguindo os passos da mãe, dona Mariana veio a se tornar uma das parteiras mais renomadas do rio Tejo e também conhecedora de ervas curativas. No Jordão, ambas conviveram com os Kaxinawá que ali viviam e dona Regina veio a reencontrar algumas “primas”, reconstituindo minimamente um círculo de parentes etnicamente identificados.

O casal, Dona Mariana e Seu Milton, e seus filhos e filhas viveram na sociedade de seringal e trabalharam como seringueiros para os chamados patrões e a eles esteve sempre associada a alcunha de caboclos.

A história de dona Regina é bastante parecida com a história de outras caboclas da região  que também sobreviveram às correrias do começo do século XX e que pertencem a diferentes grupos Pano. Na maioria das vezes, essas mulheres casaram-se com seringueiros de origem nordestina e constituíram famílias. Pode-se afirmar que a presença de caboclos (significando, no uso local, descendentes diretos de índios da região, em geral com uma ou duas gerações de distância de antepassados capturados em correrias) é um fato bem estabelecido no alto Juruá. == História dos "caboclos do Milton"   ==

Dona Mariana e seu Milton, em foto de julho de 1998, descendo o rio Juruá rumo a Cruzeiro do Sul. Foto: Mariana Ciavatta Pantoja
Dona Mariana e seu Milton, em foto de julho de 1998, descendo o rio Juruá rumo a Cruzeiro do Sul. Foto: Mariana Ciavatta Pantoja

Já nos anos de 1970 e 1980, os filhos de seu Milton eram conhecidos como “os caboclos do Milton”, indicando que se tratava dos filhos caboclos de um pai também caboclo. Sua esposa, não raras vezes, era referida como “a cabocla Mariana”.

Nessa época, já moravam nas margens do rio Tejo, no seringal Restauração. De seus dez filhos e filhas nascidos e criados, vários já estavam casados e netos começavam a chegar. Este extenso grupo de parentes cognáticos, composto por duas a três gerações e com a liderança do patriarca reconhecida, era também conhecido (mesmo assim não se auto-designando) como “os Milton”.

Se o uso de patronímicos para designar grupos familiares é comum nos seringais acreanos, a indicação da ascendência indígena é menos comum. Mas “os Milton” sempre foram referidos como caboclos, algo que encerrava preconceito, mas indicava também um traço de diferenciação ancorado em uma trajetória histórica particular.

“Seu Milton” é filho de um índio Nehanawa capturado em uma correria no rio Envira. [As correrias eram perseguições armadas aos povos indígenas que acompanharam a abertura e a instalação dos seringais no Acre, no final do século XIX e início do século XX]. Milton foi criado por um seringueiro cearense pois seu pai, conhecido como Pedro Tibúrcio, não teve a felicidade de criar o filho, pois morreu jovem.

Dona Mariana foi batizada como Maria Regina da Silva, cresceu na casa dos patrões do seringal e, por volta dos 13 anos, foi dada em casamento ao seu captor.

O vínculo entre mãe e filha sempre foi bastante forte. Ambas trabalharam como seringueiras e dona Mariana aprendeu a cortar seringa com a mãe. Trabalhavam para se manter nas casas onde moravam, de companheiros ou compadres de dona Regina. Dona Mariana se tornou a guardiã da memória da mãe. Seus filhos e filhas cresceram ouvindo as histórias da avó, que dona Mariana reproduz ainda hoje. Dona Regina faleceu em 1954, já na região do rio Tejo, onde morava ao lado da filha, recém-casada com Milton.

Dez anos depois, Milton veio com toda a família morar nas imediações da sede do seringal Restauração, onde estão até hoje. Os traços e a herança que marcam os membros dessa família como descendentes de índios sempre estiveram presentes, seja pela memória da dona Regina, que sua filha Mariana não deixava cair no esquecimento, seja pelos vizinhos e contemporâneos que, ao chamá-los de caboclos, também contribuíam para manter social e subjetivamente vivo este traço identitário.

Deve-se considerar ainda que há uma proximidade entre as gerações de descendentes e ascendentes indígenas – se tomarmos seu Milton ou dona Mariana como referência, a distância é de apenas uma geração. Há, além disso, uma proximidade geográfica com outros povos indígenas, em especial os Kaxinawá do rio Jordão, onde dona Mariana e Milton nasceram e com quem conviveram até sua mudança para o Tejo, rio vizinho.

É interessante notar que, em 1988, quando o então coordenador regional do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), Antonio Macedo, chegou à Restauração para realizar as primeiras reuniões, chamou-lhe imediatamente atenção aqueles descendentes de índios.

A partir do final dos anos de 1980 é possível perceber, por parte da família de seu Milton e dona Mariana, uma releitura e recusa da condição de caboclos e a afirmação de que são índios.

A recém-surgida reivindicação de uma identidade e território diferenciados por parte dos Kuntanawa deve ser entendida como parte de um contexto no qual vários aspectos estão entrecruzados: processos de re-elaboração identitária; disputas políticas locais; discriminação étnica; atuação de mediadores, entre outros fatores que serão apresentados a seguir.

A Resex do Alto Juruá, os Kuntanawa e a política local

O engajamento dos Kuntanawa

Em novembro de 2008, numa oficina do Projeto Nova Cartografia Social na aldeia Sete Estrelas, os Kuntanawa conversaram entre si sobre sua demanda territorial. Foto: Elizanilde Alves
Em novembro de 2008, numa oficina do Projeto Nova Cartografia Social na aldeia Sete Estrelas, os Kuntanawa conversaram entre si sobre sua demanda territorial. Foto: Elizanilde Alves

A Reserva Extrativista (Resex) do Alto Juruá foi a primeira criada no Brasil, em 1990, e foi fruto principalmente da mobilização social dos moradores, entre eles os “caboclos do Milton”, liderados pelo Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) e por delegados sindicais (Macedo, 1988; Almeida, 1993 e Costa, 1998).

“Os Milton”, naquele momento, não viviam a etnicidade como um fator que os afastava de seus vizinhos seringueiros. Ao contrário, tratavam-se antes de seringueiros de origem indígena cuja trajetória de vida levou-os a lutar por uma demanda territorial comum, junto com outros seringueiros.

O engajamento nas lutas pela criação da Cooperativa e da própria Resex trouxe mudanças para a vida de seu Milton e família. Vários deles assumiram cargos de gerentes de núcleos da Cooperativa ou trabalharam em outras funções relacionadas, como motoristas das embarcações do CNS. Isto trouxe benefícios, como remuneração e acesso direto a bens de consumo que simbolizavam poder (as mercadorias). Não há como negar que “os Milton” ficaram em evidência. Era o grupo com o qual o coordenador regional do CNS e todos os projetos que posteriormente vieram a ser implantados na área (saúde, pesquisa, couro vegetal) podia contar, e, com efeito, eram sempre procurados. Seu Milton foi vice-presidente da Associação dos Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juruá por dois mandatos (1989-1993), e também exerceu a presidência da mesma (1993-1994).

Entre os anos de 1994 e 1996, Milton e seus filhos permaneceram próximos à Associação, participando de suas assembléias, alguns integrando as diretorias eleitas, atuando nos projetos que foram canalizados para a Reserva. No alto Tejo, a família de seu Milton e dona Mariana ficou conhecida como um extenso grupo influente e pioneiro nas lutas pela Reserva.

Disputas políticas e novos desafios para os Kuntanawa

O processo de luta pelo reconhecimento e demarcação de seu território tem exigido dos Kuntanawa pressão junto a orgãos governamentais e ao Ministério Público. Foto: autor não identificado, Cruzeiro do Sul (Acre), 2007
O processo de luta pelo reconhecimento e demarcação de seu território tem exigido dos Kuntanawa pressão junto a orgãos governamentais e ao Ministério Público. Foto: autor não identificado, Cruzeiro do Sul (Acre), 2007

A ascensão de Orleir Fortunato à direção da Associação, em 1999, inaugurou um período de fortes mudanças, tanto do ponto de vista da política local quanto do espaço político ocupado por seu Milton e filhos na gestão da Resex. Nas eleições de 1999, um grande número de sócios somente apareceu no dia da votação e já estavam decididos em quem iam votar. Algo havia mudado na “política seringueira”. Parecia que diretores da Associação jogavam com as armas da política clientelista local, privilegiando grupos e trocando favores por votos.

É preciso considerar que desde 1994, e mais expressivamente a partir de 1995, recursos do Projeto Resex (parte do Plano Piloto para Proteção das Florestas Tropicais no Brasil, também conhecido como PPG-7) começaram a chegar na Resex do Alto Juruá, concretizando-se na forma de apoio institucional à Associação e a seus diretores (montagem e funcionamento de um escritório, ajudas de custo) e de benefícios materiais para os moradores da Reserva (barcos comunitários, peladeiras de arroz, engenhocas de cana, casas-de-farinha etc.). A partir daí, um novo padrão de atuação da Associação se instaurou. A disponibilidade de recursos (que teve continuidade com o Resex II) e de outras parcerias institucionais viabilizou a execução de uma série de atividades e melhorias que foram devidamente capitalizadas na disputa pela condução da Associação.

Houve, entretanto, em 2002, uma mobilização visando a realização de uma nova assembléia na foz do rio Bagé, no intuito de criar uma nova associação. Tratou-se de uma iniciativa protagonizada principalmente por grupos que foram pioneiros no processo de criação da Reserva e que se sentiam alijados dos processos decisórios e das instâncias de poder da Associação. A nova assembléia, contudo, não se concretizou. “Os Milton” apoiaram esta iniciativa. Alegavam estar sendo excluídos deliberadamente do acesso à benefícios e sofrendo discriminação étnica. Discriminação esta que não se restringia ao campo de disputas políticas pela Associação. Em seus locais de moradia, por exemplo, por mais de uma vez Milton assistiu netos e netas chegarem em casa chorando pelo preconceito de que estavam sendo alvo na escola pelo fato de serem índios.

Em 2002, logo após as eleições da Associação (na qual Orleir Fortunato foi reeleito) e a tentativa frustrada de criar uma nova associação, os Kuntanawa estenderam a ruptura política em curso para uma ruptura étnica: somos diferentes, somos outro povo. Esta afirmação levou, por sua vez, ao estabelecimento progressivo de relações com novos mediadores, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj), por exemplo. Assim, a emergência da demanda Kuntanawa está de alguma forma relacionada aos rumos que tomou a Associação e à perda de espaço político pela família de seu Milton e dona Mariana.  

Em reuniões familiares, os Kuntanawa tem aproveitado para construir internamente um consenso em torno de suas demandas étnicas e territoriais. Foto: Haru Kuntanawa, aldeia Sete Estrelas, 2008
Em reuniões familiares, os Kuntanawa tem aproveitado para construir internamente um consenso em torno de suas demandas étnicas e territoriais. Foto: Haru Kuntanawa, aldeia Sete Estrelas, 2008

Em 2005, novamente, agora com sucesso e apoio da Prefeitura e do governo estadual, grupos insatisfeitos com o rumo da Associação fundaram duas novas associações: as Associações Agroextrativistas do Rio Tejo (Asatejo) e do Rio Juruá (Asajuruá). Os Kuntanawa apoiaram as novas associações, mas não estacionaram seu próprio processo e seguiram reivindicando o reconhecimento étnico e a demarcação de seu território no interior da Resex. Este fato terminou por afastá-los das novas representações institucionais da Reserva.

Em janeiro de 2006, um novo elemento compunha o seu discurso identitário: a discordância e oposição à forma como os recursos naturais estavam sendo utilizados pelos moradores da Reserva e a ausência das instâncias competentes, como as associações e o Ibama. Os Kuntanawa afirmavam indignação com o descumprimento das “leis da Reserva”, criadas pelos próprios moradores. A conquista de seu próprio território ganhou assim mais uma justificativa: a ambiental. Lá, afirmam, não serão permitidas “invasões” (exploração predatória) como as que estão ocorrendo na Resex e que estão atingindo recursos como a caça e madeira. Afirmam ainda que a criação de zonas de “refúgio” no interior de sua Terra Indígena irá gerar benefícios também para os moradores da Resex, já que tanto a caça quanto os peixes poderão ali se reproduzir e espalhar-se por toda região.

Uso ritual da ayahuasca

Osmildo Kuntanawa, cacique do grupo, macerando o cipó (Banisteriopis caapi) para o preparo da ayahuasca. Foto: Mariana Pantoja, aldeia Sete Estrelas, 2007
Osmildo Kuntanawa, cacique do grupo, macerando o cipó (Banisteriopis caapi) para o preparo da ayahuasca. Foto: Mariana Pantoja, aldeia Sete Estrelas, 2007

Desde os anos de 1960, os seringueiros do alto rio Tejo conhecem a ayahuasca por intermédio de grupos indígenas vizinhos, mas foi na passagem dos anos 90 que Milton e seus filhos conheceram a bebida ancestral, da qual a finada dona Regina, respectivamente sogra e avó, falava quando contava sobre a cultura de seu povo.

As narrativas de dona Regina foram neste contexto relembradas, ganhando assim novos significados. A etnicidade difusa que marcava a auto-identificação dos “caboclos do Milton” como grupo recebeu, por intermédio da experiência da ayahuasca, um reforço emocional e positivo. A referência à ascendência indígena tornou-se mais presente, sendo este passado valorizado.

Em 1989, seu Milton e alguns de seus filhos participaram da viagem que o cantor Milton Nascimento fez à Terra Indígena Kampa do rio Amônea, vizinha à área da futura Reserva. Em 1991, integraram equipes do levantamento e cadastramento da população da Reserva, em particular das que percorreram o alto rio Tejo comandadas por Antonio Alves e Terri Aquino. Este último aproveitou a viagem para visitar as Terras Indígenas vizinhas Kaxinawá do rio Jordão e do rio Breu. Nestas duas viagens, tiveram contato com renomados pajés da região e participaram de diversas sessões de ayahuasca. Após estas viagens, pelos menos dois dos filhos de Milton começaram a preparar a ayahuasca e realizar rituais com a bebida.

As assembléias de seringueiros realizadas a partir de 1989 passaram a contar com a presença de representantes das Terras Indígenas vizinhas, e uma noite era sempre reservada para aqueles que desejassem experimentar a ayahuasca em sessões comandadas por pajés, como o saudoso Davi Lopes Kampa.  

No preparo da ayahuasca, a seleção de folhas da chacrona (Psychotria viridis) é uma das etapas. Foto: Mariana Ciavatta Pantoja, foz do igarapé Machadinho, 1995
No preparo da ayahuasca, a seleção de folhas da chacrona (Psychotria viridis) é uma das etapas. Foto: Mariana Ciavatta Pantoja, foz do igarapé Machadinho, 1995

Diversos relatos falam de contatos, sob o efeito da bebida, com seres do universo indígena. Osmildo, um dos filhos de Milton e atual liderança na luta pelo reconhecimento indígena, em 1991, recém-chegado na viagem de cadastramento e visita a Terras Indígenas, incorporava elementos indígenas no seu trajar, como colares e faixas no cabelo. Nas sessões de ayahuasca, costumava cantar em língua indígena os cantos que aprendera com seus amigos das Terras Indígenas dos rios Amônea, Jordão e Breu. Almejava tornar-se um pajé. Entre os filhos de Milton, ele era quem mais freqüentemente invocava e assumia publicamente a ascendência indígena.

Um outro filho de Milton, Pedrinho, nesta mesma época também começou a preparar ele próprio a ayahuasca, o que se deu após uma marcante experiência sob o efeito da bebida em que foi “autorizado” a tal. Aos poucos, Milton e seus filhos foram conformando um núcleo familiar, majoritariamente masculino, que periodicamente passou a se reunir para tomar ayahuasca – costume até hoje vigente.

Hoje, conforme afirmam, tendo a ayahuasca como guia e professora, os Kuntanawa exploram dimensões insondáveis e delas trazem de volta para seu povo pinturas corporais, cânticos e conhecimentos mágicos e etnobotânicos. É sob o comando da ayahuasca, e com o apoio de pajés Ashaninka, que emerge o xamanismo Kuntanawa. Jovens Kuntanawa, netos de Milton, aprendem com a ayahuasca e a orientação dos mais experientes a “ouvir” a natureza em rituais ao ar livre e silenciosos. Músicas relatando a história Kuntanawa são compostas e tornam-se conhecidas de todo o povo; cantos indígenas também são entoados sob inspiração da bebida ritual, e ainda as canções ayahuasqueiras dos “parentes” Kaxinawa e Yawanawa.

É sob a experiência visceral desta bebida tida como sagrada para esses povos que Milton e seus filhos afirmam estar acessando dimensões mais profundas da indianidade Kuntanawa. A ayahuasca não pode ser menosprezada como um poderoso mecanismo de subjetivação em toda a emergência étnica dos Kuntanawa.  

Tradições revitalizadas

O artesanato de cocares está se tornando uma das especialidades dos Kuntanawa. Foto: Mariana Ciavatta Pantoja, aldeia Sete Estrelas, 2007
O artesanato de cocares está se tornando uma das especialidades dos Kuntanawa. Foto: Mariana Ciavatta Pantoja, aldeia Sete Estrelas, 2007

Os Kuntanawa são uma etnia em reconstrução em todos os aspectos: língua, pintura, rituais e pertencimento. Há iniciativas de visitas e permanências em Terras Indígenas vizinhas, de reconstituição da língua de seu povo por meio de outras similares (contato com povos Pano vizinhos). Sinais externos, como a pintura, são recuperados por meio de experiências com a ayahuasca e de uma garimpagem apurada nos relatos de dona Regina, ainda vivos na memória de dona Mariana. Nomes indígenas também estão sendo adotados.

Artesanatos começam a ser confeccionados a partir daqueles já feitos por dona Mariana e dos existentes nas Terras Indígenas vizinhas. Há planos de uma grande migração, visando reunir todos os descendentes de seu Milton e dona Mariana dentro da área que pleiteiam, ocupando-a com aldeias que já começam a se estruturar.

Em 2008, os Kuntanawa foram contemplados pela Edição Xicão Xukuru do Prêmio Culturas Indígenas com o projeto “Revitalização e Resgate da Cultura do Povo Kontanawa”, a ser executado durante o ano de 2009. Ainda neste mesmo ano, como apoio da  Lei Estadual de Incentivo a Cultura (governo do Acre), deverá ser lançado um CD com canções compostas por alguns jovens Kuntanawa. Este mesmo grupo, liderado por Haru, neto de seu Milton, tem acumulado material em vídeo e tem planos de elaboração de pelo menos um filme sobre os Kuntanawa.

Luta pela demarcação da terra

No primeiro semestre de 2004, o escritório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Amazônia Ocidental, na cidade de Cruzeiro do Sul, foi procurado por um casal de moradores da Reserva Extrativista do Alto Juruá – Milton Gomes da Conceição e Mariana Feitosa do Nascimento – e por seu filho, Osmildo Silva da Conceição, que afirmaram ser pertencentes ao povo indígena Kuntanawa. Ofícios foram então enviados pelo Cimi aos escritórios de Cruzeiro do Sul e Rio Branco da Fundação Nacional do Índio (Funai) comunicando o fato e solicitando que uma investigação fosse iniciada o quanto antes sobre aquela nova demanda étnico-territorial. O Cimi informava ainda que desde 2001 tinha conhecimento da existência daquele grupo remanescente dos Kuntanawa e que o grupo estava sendo hostilizado pelos membros da associação de moradores da Resex justamente por serem índios.

Em janeiro de 2005, a equipe do Cimi de Cruzeiro do Sul esteve na Reserva visitando várias das famílias que compõem o povo Kuntanawa. De lá, trouxeram um abaixo-assinado, com 40 assinaturas, que exigia o reconhecimento étnico e demarcação de um território próprio. Os Kuntanawa continuaram se mobilizando ao longo daquele ano, fazendo-se presentes em diversos encontros de povos indígenas, articulando-se com organizações indígenas (como a Organização dos Povos Indígenas do Juruá -  Opirj), o governo estadual e a Funai. A partir de então diversos ofícios foram encaminhados aos orgãos governamentais competentes reivindicando direitos previstos legalmente, como assistência diferenciada à saúde, além do reconhecimento étnico e a demarcação territorial pela Funai. Por mais de uma vez, comitivas Kuntanawa visitaram representantes dos poderes públicos em Cruzeiro do Sul e na capital acreana.

Em dezembro de 2007, o Ministério Público Federal do Acre encaminhou uma recomendação à Funai para que os trabalhos de demarcação da Terra Indígena Kuntanawa fossem iniciados. Em agosto de 2008, o Ministério Público Federal tornou público um edital onde a Funai é citada em ação envolvendo a demarcação da Terra Indígena Kuntanawa.

Fontes de informação

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_____. “Direitos à Floresta e Ambientalismo: seringueiros e suas lutas”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: ANPOCS, 2004, v. 19, n. 55, p. 33-52.

  • Aquino, Terri V. de. Conflitos Territoriais e Relevância Ambiental no Alto Juruá acreano. Relatório entregue ao CNPT/IBAMA. Brasília: mimeo, 2003.

_____. & Iglesias, Marcelo P. Kaxinawá do Rio Jordão. História, território, economia e desenvolvimento sustentado. Rio Branco: CPI, 1994.

  • Costa, Eliza M. L. Da patronagem à Associação: poderes em disputa na Reserva Extrativista do Alto Juruá. Campinas: UNICAMP, 1998. (Dissertação de Mestrado)
  • Macedo, Antonio L. B. de. Levantamento da situação atual dos seringueiros do rio Tejo. Mimeo, 1988.
  • Menezes, Mário. “As Reservas Extrativistas na Luta de Chico Mendes”. In: Reforma Agrária. Campinas: ABRA, 1989, ano 19, n. 1, p. 17-25.
  • Pantoja, Mariana C. “Indianidade e Direitos no Alto Juruá”. In: Jornal Página 20. Rio Branco, Acre, 6 e 7 de janeiro, 2008, p.10-11.

_____. Os Milton. Cem anos de história nos seringais. Rio Branco, Edufac, 2ª. edição, 2008.

  • Pantoja Franco, Mariana & Conceição, Osmildo S. “Breves revelações sobre a ayahuasca (o uso do chá entre os seringueiros do Alto Juruá)”. In: Labate, B. C. & Araújo, W. S. O Uso Ritual da Ayahuasca. Campinas: Mercado de Letras, 2002, p. 199-225.
  • Sant´ana Júnior, Horácio A. Florestania: a saga acreana e os povos da floresta. Rio Branco: Edufac, 2004.
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_____. “Le Haut-Tarauaca”. In: La Géographie, n. 45, 1926.