De Povos Indígenas no Brasil
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"Conversamos com o que a gente cultiva"

por Ajãreaty Wajãpi. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.

Ajãreaty Wajãpi. Foto:Dominique Gallois, 2012.
Ajãreaty Wajãpi. Foto:Dominique Gallois, 2012.

Quando a gente vai plantar banana, a gente tem que conversar com ela para plantar, disseram os nossos avós antigamente. É assim que a gente fala: "Você faz seu cacho igual ninho de caba, bem comprido (kavu poko pẽ sikõ ne 'anee)". É assim que a gente diz para plantar banana e daí ela dá cacho bem comprido. Quando vamos plantar cará tem que falar: "Você tem que crescer igual panaku fechado, para depois a gente fazer de você bebida (panakuruvãkãsãsã eu amẽ tẽ a'i ty romo eu ene eu)". É assim que a gente diz para o cará, antigamente minha mãe falou para mim. Eu sei hoje o caminho de como cultivar essas plantas. Quando a gente vai plantar abacaxi, tem que também conversar com ela: "Você tem que crescer da altura do meu pescoço, vocês todas abacaxi, bem baixo, perto da terra, para dar rápido (earypy poko pe sikõ ene nanã kõ yvyu vyu gã i'a se'e se'e je i'a)". Antigamente minha mãe conversou comigo, por isso que hoje eu sei cultivar essas plantas. Também quando planta maniva, a gente não planta de qualquer jeito, explicava minha mãe, tem que conversar com ela e depois enfiar na terra. "Tem que dar bem a raiz para fazer caxiri (neraposikene kasiri romõ eu ene)", falamos para a maniva, aí a maniva fica alegre e as plantas vão crescer bem. É o que me disse minha mãe, antigamente. É assim que vai dar grandes raízes.

Para tudo que cultivamos nós falamos: cará, batata, banana, maniva, milho, pimenta... Antigamente, os antepassados diziam para a batata multiplicar bem (jity pe eu po'a po'a po'a po'a eu). Este ensinamento veio de antigamente, o dono da batata que falou com os nossos antepassados e nós até hoje não esquecemos esse jeito de plantar. E então a batata se multiplica para dar muitas batatas. Tem que dar também igual pedra que fica em cima da terra. "Assim que vai dar bem batata": disseram nossos antepassados e até hoje não perdemos esse jeito de plantar. Para pimenta falamos também: "Você dá como se fosse fruta maruka" (fruta doce e vermelha que dá em árvores altas em determinadas regiões, ao pé de montanhas). Ela fica feliz e dá muita pimenta. Para algodão a gente diz: "Você dá bem igual a algodão de pirisi (periquito)", e aí que algodão vai dar. Conversamos com o algodão, com o que a gente cultiva.


O que minha mãe me ensinou antigamente eu não esqueci. Para a pupunha a gente fala: "dá igual fruta de maraja'y" (fruta doce que dá em grande quantidade em uma árvore que nasce na beira dos igarapés). É assim que vai dar bem o que a gente planta, falou minha mãe antigamente. Nosso dono fez as plantas cultivadas, deu a fala para elas e elas falaram para os nossos antepassados: "Vocês têm que conversar com a gente quando vai plantar". E cada planta ensinou o que falar para o nosso antepassado. E com eles nós aprendemos e até hoje não esquecemos esse conhecimento. Eu mesma estou usando o que eu aprendi, mas não sei se outras pessoas usam. Eu não sei se outros pais repassam esses conhecimentos para seus filhos. Para plantar urucum, temos que dizer: "Você tem que dar igual urukurana" (planta nativa que tem folha e fruto parecido com o urucum e dá muito no mato) e aí que urucum vai dar muito fruto. Quando falamos isso, todos os urucum vão ficar felizes e vão dar frutos para a gente se pintar. Tem os donos das plantas cultivadas, eles escutam nossa fala e ficam felizes e falam para plantas darem bem.

Antigamente a casa falava, o fogo falava, a cerâmica falava. E aí nosso dono tirou a fala deles, por isso não ouvimos mais. Por isso que hoje em dia as plantas, as casas, o machado, a panela, a massa de mandioca, a nossa comida não conversam mais. Acho que nossas comidas e nossas plantas falaram alguma coisa que o nosso dono não gostou e então ele tirou a fala deles.

As caças também falavam, todos falavam. A floresta também falava antigamente. Se a gente vai derrubar a árvore, ela grita: "Ai!". Se a gente vai matar a caça, ela grita também: "Ai, não me mata!". Por isso que eu acho que o dono deles falou para Janejara (nosso dono) retirar a fala deles. Eu acho que foi assim, mas não tenho certeza. Até mandioca também gritava antigamente. Quando a gente vai arrancar ela da terra, aí ela grita: "Aaaai!" É por isso que hoje em dia, antes de arrancar a mandioca, temos que conversar com ela para poder puxar: "Cuidado, eu vou te arrancar". Aí que ela vai saber que a gente vai arrancar, minha mãe sempre falou. Todas as plantas que estão em uma roça nova a gente tem que conversar com elas antes de tirar, para elas não ficarem chateadas, porque têm seus donos [e eles também podem ficar chateados].

Antigamente, eu acho que pajé que sabia dos donos e depois falou para a gente. Minha mãe falou para mim que todos têm dono. É sobre esse caminho que eu estou falando: não errei o que minha mãe me ensinou. Se matamos caça, vai fazer mal para a criança pequena, porque tem os donos das caças. Quando nós temos filho pequeno não podemos pegar água e muitas outras coisas, porque tem donos que podem até matar a criança.

Hoje em dia não sei se os jovens respeitam estas palavras, não sei se estão sabendo sobre isso. Nós falamos, mas hoje em dia os jovens não obedecem a nossa fala. Eu não sei por que os jovens estão assim. Depois do contato com os karai kõ (não índios), os nossos jovens não ouvem mais a gente: tomam banho no rio como se não tivesse dono do rio. Nós falamos que tem moju, tem a dono do rio que pode matar rápido a pessoa, mas eles não escutam, não sei por quê. Eles dizem: "Não tem dono, sucuriju não mata a pessoa". Mas tem dono! Dono das plantas cultivadas, da maniva... tem dono. Nós falamos para elas (as jovens) que quando elas têm filho pequeno não podem arrancar mandioca, mas elas não escutam. E elas perguntam: "O que é isso (donos das plantas cultivadas)"?

Eu converso com as minhas netas que quando estão menstruadas não podem ir no rio, não podem arrancar mandioca, não podem pegar na terra; assim explicou minha mãe antigamente para mim. E é por isso que hoje em dia eu não sinto dor nos braços, também eu não desmaio, nem falo assim: "Eu estou com dor de cabeça". Somente quando eu pego gripe e malária eu sinto dor de cabeça. Eu acho que hoje em dia os jovens não escutam mais essas coisas e ficam falando: "Eu estou sentindo dor de cabeça e tontura também". "Eu não sei o que é isso", falei para eles. "Parece que vocês estão comendo muita comida de karai kõ. E os karai kõ mesmo estão falando que a comida deles faz mal". Nós não misturamos nosso alimento. Nós bebemos kasiri miti (bebida pouco fermentada de mandioca), bebida de batata damos para as crianças e também kasiri miti doce. Os adultos bebem kasiri wasu, bebida forte, bem fermentada. Aqueles que são muito jovens não deveriam tomar kasiri forte, mas hoje em dia os rapazes tomam. Nós pedimos para eles não tomarem, mas assim mesmo eles tomam. "Kasiri não faz mal", eles dizem.

Não sei por que está acontecendo isso hoje em dia, os jovens não escutam nossas palavras. Não escutam de jeito nenhum. Eles bebem também bebida de não índio. Esses jovens não sabem andar no mato, não têm flecha e não fazem utensílios. Por isso hoje em dia nós falamos para eles fazerem utensílios. Os jovens da minha aldeia fazem bem utensílios, fazem peneira, tipiti, tipoia, plantam e fiam algodão. Do kasiri a gente não vai esquecer, até no futuro. As festas, eles deixaram de fazer. Eles não fazem nenhuma festa para eu ver. Eu falo para eles fazerem festa, mas eles não fazem. Festa dá alegria para nós, eu falo.

Kasiri também dá alegria para gente. Eles não ouvem. "Toca flauta para eu escutar"; só que eles não tocam. De vez em quando eles tocam. Essa flauta que dá alegria para o kasiri, falaram nossos antepassados. Muitas vezes os jovens tomam kasiri grande, mas não fazem festa. E as donas do kasiri falam para eles fazerem festa, mas eles não fazem. Também para os velhos conhecedores nós falamos para fazer festa, mas eles respondem: "Nós estamos velhos para fazer". Nós falamos para os jovens aproveitarem, pois os velhos conhecedores estão ainda hoje conosco.

Transformações nas relações: mudanças nos corpos e no padrão alimentar dos Wajãpi

por Dominique Tilkin Gallois e Juliana Rosalen, antropólogas, professora e doutoranda no Departamento de Antropologia da FFLCH-USP, respectivamente

Quando pensa nos alimentos e nas roças, Ajãreaty lembra das palavras, gestos e ensinamentos de sua mãe. Com ela, aprendeu que as plantas cultivadas são pessoas, que têm suas falas, seus pensamentos, seus donos. Para produzirem bem, as plantas precisam estar felizes. Assim, quando cuidam e colhem produtos de suas roças, os Wajãpi alimentam relações com essas diferentes gente-planta, como no começo dos tempos, quando todos eram parte de uma mesma humanidade. A fala de Ajãreaty remete a esse tempo, quando todos se comunicavam. A proximidade excessiva e comportamentos inadequados entre tantas gentes acabaram provocando a raiva de Janejarã [nosso dono], que distanciou as espécies, que vivem e se reproduzem sob o cuidado de seus respectivos donos. Os Wajãpi conhecem a maneira correta de se relacionar com as plantas que cultivam, para alegrar seus donos. É assim que se gera abundância nas roças e, consequentemente, abundância de alimentos para as famílias wajãpi. Atualmente, os jovens têm se interessado pouco em aprender como se cuida bem das plantações. O crescente consumo de alimentos dos não índios e o desinteresse dos jovens pelos trabalhos agrícolas está mudando os corpos dos Wajãpi, assinalando um desequilíbrio que afeta muito além da saúde, mas impacta todo seu modo de existência, que depende da continuidade dos saberes e das práticas de que nos fala Ajãreaty.

Os depoimentos foram registrados em Wajãpi, em junho de 2016, na aldeia Kwapo’ywyry, e traduzidos por Asurui Wajãpi e Juliana Rosalen, em agosto de 2016.