Nós não éramos índios
por Bráz de Oliveira França - Rio Negro/ AM - 1999.
A narrativa abaixo foi coletada e editada por Geraldo Andrello (antropólogo, ISA/ Unicamp). O narrador, o Baré Braz de Oliveira França, foi presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) entre 1990 a 1997.
Aicué curí uiocó, paraná-assú sui, peruaiana, quirimbaua piri pessuí [Vai aparecer do rio maior, o maior e mais poderoso inimigo de vocês]. Foi com essa mensagem que Ponaminari, o grande mensageiro de Tupana, tentou prevenir todos os povos que dominavam estas terras antes de 1500. Talvez os pajés e os chefes imaginassem que este poderoso inimigo fosse uma epidemia, ou a ira dos ventos, revolta das matas, ou mesmo vingança de Curupira. Mas em nenhum momento eles imaginaram que o inimigo seria o homem branco, vindo do meio do mar, conforme testemunharam os olhares Tupiniquim, Tupinambá e quem sabe outros povos nativos da costa Atlântica. Muitos anos depois, essa mesma história se repetiria nas terras dos valentes Xavante, Kaiapó, Juruna e Kayabi no Centro-Oeste, entre os Tarumã, Baré e Manao, na confluência dos rios Negro e Solimões, e entre os Tukano, Baniwa, Desana e outros no extremo norte, no alto rio Negro.
Possivelmente, esses brancos foram recebidos com grande surpresa e admiração, mostrando-se por sua vez, com cara de bons amigos, oferecendo presentes, tentando se comunicar através de gestos e sinais. Em seguida, voltaram a seu país de origem, para comunicar ao rei a descoberta de novas terras, habitadas por indianos bugres ou indianos selvagens. Com essa notícia, o rei de Portugal deve ter, naturalmente, enviado para estas terras vários navios com milhares de pessoas, com autorização para ocupar e dominar o maior espaço possível do território então ocupado por seus verdadeiros donos, a custa de qualquer preço.
Enquanto isso, o povo jamais poderia imaginar a tamanha barbaridade que o homem branco seria capaz. Não sabiam que a partir de então estava decretado o genocídio, o etnocídio, os massacres e as opressões dirigidos àqueles que passaram a ser chamados de índios.
No rio Negro, habitado ao longo de todo o seu curso pelo povo Baré, e em seus afluentes pelos Tukano, Desana, Arapasso, Wanano, Tuyuka, Baniwa, Warekena e outros, ocorreram as mesmas violências. Povos e aldeias inteiras foram dizimados pelos invasores franceses, holandeses e portugueses. Comerciantes brancos, credenciados pelos governadores das províncias, eram portadores de carta branca para praticarem qualquer ato criminoso contra os povos indígenas. Nem mesmo o grande cacique guerreiro “Wayury-kawa” (Ajuricaba) conseguiu livrar seu povo dos carrascos invasores, pois a luta era totalmente desigual: enquanto os índios lutavam com suas flechas e zarabatanas, os brancos disparavam poderosos canhões contra homens, mulheres e crianças que tentavam impedi-los de entrar em suas terras. Mas mesmo dominado, preso e ferido, Ajuricaba preferiu a morte, jogando-se acorrentado ao rio.
Hoje, 500 anos depois, ainda lembramos das tristes histórias contadas pelos nossos avós. Eles diziam que os primeiros comerciantes que apareceram no rio Negro traziam consigo mercadorias como fósforo, terçados, machados e tecidos, com que tentavam convencer os índios a produzir borracha, castanha, balata, piaçaba, cipó titica e outros produtos naturais. Como essas mercadorias despertavam pouco interesse entre os índios, eles passaram a usar a violência, atacando aldeias e aprisionando homens e mulheres para levá-los aos seringais, castanhais, sorvais ou piaçabais localizados nos rios Brancos, Uacará, Padauiry e Preto. Muitos nunca mais voltaram desses lugares, uns porque não resistiam aos maus tratos dos patrões, outros porque eram vítimas de doenças contagiosas, como febre amarela, gripe, varíola ou sarampo. Ainda hoje, há descendentes dos Baré, Tukano, Baniwa e Warekena que vivem nesses rios, em uma vida de escravidão. Há pessoas de mais de 60 anos que sequer conhecem o rio Negro, mas apenas a lei do patrão.
Até as primeiras décadas do século XX, era “de praxe” o branco ter a seu serviço homens e mulheres indígenas, seja para simples trabalhos domésticos ou para trabalhos mais sacrificados, como servir como remadores nas grandes canoas que saíam de Tawa (São Gabriel) até Belém do Pará, levando produto e trazendo mercadoria, numa viagem que demorava de seis a dez meses. Muitos remadores não conseguiam retornar, mortos durante a viagem pelo patrão. Aqueles que iam para extrair borracha ou outros produtos eram obrigados a produzir uma determinada quantidade para entrega e, caso não atingissem sua cota, eram açoitados no terreiro do barracão. Os que eram obrigados a assistir esse espetáculo deviam dar risadas para não terem o mesmo destino.
Nessa mesma época, apareceram os primeiros missionários. Eles tinham o propósito de aldear os índios, com a intenção de livrá-los das garras dos patrões e submetê-los a crer em Deus através da evangelização católica. Essa investida, no entanto, foi pior do que qualquer sofrimento físico, pois obrigaram os índios a abandonar várias de suas práticas culturais, como as curas, as festas de Dabucury, os rituais de preparação dos jovens e suas formas de homenagear e agradecer o grande criador do universo. Tudo isso virou ato diabólico na lei dos missionários. Nos grandes prédios das missões, foram criadas escolas onde os índios eram obrigados a falar a língua portuguesa e a rezar em latim.
Nas primeiras décadas do século também se instalou na região do baixo rio Uaupés, na Ilha de Bela Vista, a família Albuquerque. Um desses que se fez conhecer por Manduca, não por ser bom, mas por ser perverso e bêbado, recebeu o título de Diretor de Índios pelo antigo SPI. Manduca Albuquerque fazia questão de divulgar sua fama pelos rios Uaupés, Tiquié e Papuri. Toda a população desses rios tinha que ser seu produtor de borracha e farinha. Nessa época, ele comprou um dos primeiros motores da região, com que transportava sua produção e seus homens, mas os índios tinham que remar mesmo quando o motor estava funcionando e só podiam viajar sentados ou deitados. Conta-se que um dia ele viajou com seu motor até Manaus, quando alguns índios decidiram matar um de seus capangas mais perversos. Quando Manduca chegou, ao saber da notícia, mandou seus capangas prenderem todos os homens e mulheres de um determinado lugar para conversar com ele. Quando esse pessoal chegou, ele já estava em estado de embriaguês e ordenou que todos fossem amarrados ao pé de uma laranjeira onde havia um enorme formigueiro, até o dia seguinte. Ordenou então que todos embarcassem para que ele, pessoalmente, os levasse de volta. Nessa viagem, em meio a uma grande bebedeira de cachaça, ordenou que três de cada vez caíssem na água. Então começou a disparar com seu rifle 44 na cabeça de cada um, e assim matou todos.
Nas décadas de 50 e 60, nos rios Uaupés, Tiquié, Içana e Xié o produto industrializado chegava através dos chamados regatões (comerciantes ambulantes), que também se aproveitavam da mão-de-obra barata dos índios. Na sua mercadoria, sempre tinha a cachaça, com a qual embriagava os homens, para abusarem sexualmente das mulheres, casadas e solteiras, como forma de pagamento das dívidas contraídas pelos pais e maridos.
Apesar de todo esse passado de violência e massacres, podemos registrar alguma coisa como vitória: a demarcação das cinco terras indígenas no alto rio Negro, confirmando mais uma vez a profecia do grande mensageiro de Tupana, o Purnaminari. Em uma de suas visitas a seu povo, muito irritado, disse: - “Puxí curí peçassa amun-itá ruaxara, maramên curí pemanduari ixê, aramém curí peiassúca, peiaxiú paraná ribiiuá upê, pemucamém peruá, pericú-aram maam peiara, Tupanaumeém ua peiaram”. [Vocês agora vão ser dominados por outras pessoas, até quando vocês se lembrarem de mim, aí então vocês irão ao rio tomar banho e chorar mostrando suas caras, para que assim eu vos reconheça e Tupana devolva aquilo que sempre foi de vocês].
Analisando essa grande profecia, vemos que o povo de Tupana não era unicamente o povo Baré. Concluímos que os povos tinham que passar por esse longo período de sofrimento. Mas depois que se reconhecessem, começariam então a reconquistar seus direitos originários, agiriam como índios, brasileiros, amazonenses, sangabrielenses. A grande conquista do reconhecimento dos mais de 10 milhões de hectares de terras demarcadas no rio Negro resultou de uma luta que foi conseqüência desse passado. Mesmo assim, se alguns dos nossos antepassados nos vissem no estado em que estamos e lhe perguntássemos por que eles há 500 anos viviam livres e tranqüilos, certamente nos responderiam: “Nós não éramos índios!”
Baré-mira iupirungá (Origem do povo Baré)
Kuíri açú ambêu penãram, maiê taá baré-míra iupirungá [Agora eu contar para vocês a história da origem do povo Baré], diziam os nossos historiadores do passado. E começavam a história dizendo:
Antigamente, ainda no início do mundo, entrou no rio Negro, vindo do rio maior um grande navio, cheio de gentes no seu interior e cada um com seu par. Apenas um homem viajava neste mesmo navio, pelo lado de fora pois o mesmo não foi aceito dentro por não estar acompanhado. Ao passar pela foz do rio Negro viajava tão próximo das margens do rio, que os passageiros viram que havia muitas pessoas na margem, inclusive o homem que viajava pelo lado de fora, o qual não resistindo à tentação, logo se jogou para fora e nadou para a margem do rio. Ao alcançar a beira, ele foi agarrado por um grupo de mulheres guerreiras, que tinham o costume de aceitar apenas mulheres em seu grupo. Quando tinham necessidade de ter filhos, aprisionavam machos de outras tribos e dessa relação, se nascesse mulher elas criavam, e se fosse homem elas o matavam. Esse seria o destino do homem que nadou até o navio, para quem deram o nome de“Mira-Boia”(Gente-Cobra), se não fosse sua estrutura física ser um pouco diferente dos que elas já conheciam, por isso resolveram poupar-lhe a vida depois de terem submetido Mira-Boia a um rigoroso teste de masculinidade. As guerreiras então, prepararam uma grande festa na primeira lua cheia, grande fogueira no centro do pátio foi feita, muitas frutas e mel silvestre foram coletados. A festa com os rituais rolaram durante oito dias. No final da festa, o grupo tomou a seguinte decisão: Mira-Boia ficaria morando com um grupo com a condição de gerar um filho com cada uma delas. Teria que dormir três noites com uma mulher que estivesse na época do seu período fértil. Terminando essa missão, ele seria executado, assim como todo filho que nascesse homem.
Mira-boia então passou a conviver como grupo por um longo período, nessas condições, até que gerasse filho com a última mulher, e essa última era a “Tipa”[Rouxinol], uma jovem muito bela que estava no primeiro período de menstruação. Ela, por ser a mais nova, a mais bonita e muito querida pelo grupo, teve o privilégio de morar com Mira-Boia até que sua gestação aparecesse visualmente para o resto do grupo. Devido a isso Tipa e Mira-Boia passaram a viver uma vida a dois e quando ela percebeu que já estava gestante, descobriu também que estava perdidamente apaixonada pelo companheiro. O mesmo acontecia com Mira-Boia. Como o destino do nosso herói seria a morte, ela conseguiu convencer o seu já considerado marido para uma fuga. No primeiro período de lua nova ele e ela fugiram, aproveitando o momento em que as guerreiras saíram para caçar e coletar mel e frutas, o que serviria de consumo nos dias da festa da execução do homem que dera para o grupo muitas guerreiras de sua geração. Foram viver distante dos demais grupos. Acredita-se que esse local tenha sido nas proximidades de Mura no baixo rio Negro.
Depois de mais ou menos 30 anos, a família já estava grande, Tipa e Mira-Boia todos os dias pela tarde curtiam sua felicidade juntos com os filhos e filhas de sua geração. Com isso eles viram que podiam ser uma família muito maior. Foi então que Tupana ordenou que viesse até eles o seu Mensageiro, o qual se chamou Purnaminari para lhes dizer o seguinte:
- "Aquilo que vocês estão pensando agrada a Tupana, por isso ele me enviou, para ensinar vocês a trabalhar e com isso garantir a comida de vocês todos os dias".
Ele então passou a morar com eles por um longo período, ensinando-os a fazer canoa, remo, roça, armadilha para pegar caça, peixe e treinar o novo grupo para guerra.
Quando o pequeno grupo já sabia de tudo que lhe foi ensinado, Purnaminari organizou uma grande festa com Dabucury, Adaby e Curiamã para preparar o povo na sua caminhada, dizendo: "Agora que vocês já sabem de tudo o que eu lhes ensinei para viver, voltem para a terra de Tipa e tomem todas as mulheres do antigo grupo de Tipa para serem mulheres de vocês, aí então vocês serão grandes e respeitados e serão conhecidos por Baré-Mira (povo Baré)".
Purnaminari, o mensageiro de Tupana, voltou várias vezes para visitar e instruir seu povo. O grupo cresceu bastante a ponto de dominar totalmente a região do baixo e médio rio Negro. Ao chegarem na Cachoeira de Tawa (São Gabriel) permaneceram ali até que Purnaminari decidisse o novo destino do seu povo. No entanto, nessa cachoeira Kurukui e Bururi desentenderam-se e brigaram muito entre si, por isso resolveram separar-se, ficando Kurucuí de um lado e Buburi de outro lado do rio. Essa separação acabou provocando desobediência às regras de Purnaminari, que ordenou ao povo não se misturar com outros grupos, porém Kurucui e Baburi acharam que para pode aumentar os seus grupos tinham que ter muitas mulheres. Foi quando eles guerrearam com grupos menores para tomar suas mulheres e se multiplicarem.
Assim Tipa e Mira-Boia fizeram e conseguiram serem pais de um grande povo que, até a chegada dos “brancos”, habitava o rio Negro desde a foz até as cachoeiras.
Os Baré do Alto Rio Negro, por Dominique Buchillet (antropóloga, Institut Française de Recherche Scientifique pour le Dévélopment en Cooperation - IRD)
Os Baré, um grupo indígena de origem Aruak, vivem principalmente no Brasil, nos cursos médio e superior do rio Negro, nos rios Içana e Xié (dois afluentes do alto rio Negro) e na Venezuela, na região do canal Cassiquiara. Considera-se que eles somam aproximadamente 1500 no Brasil. O nome Baré deriva de bári, “branco”, um termo que servia para diferenciar os brancos dos negros (Perez 1988). Os Baré englobariam vários grupos indígenas citados nas fontes históricas como os Mandahuaca, Manaca, Baria, Cunipusana e Pasimonare, não considerados propriamente povos diferentes, mas “clãs exogâmicos separados de um tronco comum há aproximadamente 150-120 anos” (ibid.: 466).
No momento da conquista os Baré ocupavam um território de mais de 165 mil km2, incluindo o curso médio e superior do rio Negro, a região do canal Cassiquiare e o rio Mavaca (ibid). Os Baré foram um dos primeiros grupos indígenas do rio Negro afetados pelo contato. De fato, desde 1669, eles estavam reunidos com os Baniwa e os Passé na Fortaleza São José do Rio Negro (atual Manaus), forte militar que servia de base para as incursões na região do rio Negro, em busca de escravos.
Ao longo dos séculos foram, juntamente com outros grupos indígenas, reunidos em diversas fortalezas e vilas, onde eram submetidos ao trabalho servil. Sua língua vernacular foi gradativamente substituída pela língua geral e o português, assim como suas crenças, costumes e tradições foram adaptados, aos poucos, ao modelo português.
Até recentemente, eram considerados brancos pela Funai, mas atualmente estão em um processo de reivindicação de sua identidade étnica e de revitalização da cultura ancestral.