De Povos Indígenas no Brasil

"O tempo vai mudar, por isso chove muito. Nosso dono vai trocar a terra”

por Seremete Wajãpi

Chove muito, o verão não acontece. A roça também não queima, porque a chuva é muita. Nossos avôs já diziam isso. Parece que a nossa época não é boa, por isso a chuva não para de cair.

Antes não era assim. Antigamente, quando meu pai ainda era vivo, não era como agora. Só agora é desse jeito... Por que o tempo de hoje se transformou?

Talvez nosso dono altere o tempo de hoje, o tempo vai mudar, por isso chove muito. Nosso dono vai trocar a terra. A terra será renovada, disse o nosso dono, por isso a terra queimará. A terra queimará...

Se a terra não queimar, o dilúvio vai chegar, as águas serão profundas, o que causará a extinção. É isso que nós Wajãpi sabemos. Nós também sabemos que a escuridão vai acontecer, não irá mais amanhecer! Por quanto tempo não amanhecerá? Por mais tempo, e mais tempo ainda não amanhecerá. Em um próximo ano não terá amanhecer, diziam os nossos avôs. Talvez por isso a chuva caia incessantemente, e nós temos medo.

As donas do verão, as cigarras, cantam bonito demais. Isso não mudou. Nesta época de verão elas cantam, quando o sol está quente... E agora elas cantam muito, e cantam muito... Depois a chuva cai e então elas não cantam mais. Hoje elas não cantam, a chuva as interrompe, é frio para elas. Quando não chove, elas cantam, cantam e cantam, depois de três luas, elas calam. Atualmente, depois de uma lua, elas já param de cantar, porque a chuva é muita. “Não é bom tanta chuva”, dizem elas.

Antes não era assim, quando eu ia para a aldeia Parijakae, as cigarras só calavam depois de três luas, o sol era quente para elas, quente, quente, quente para elas, por isso elas cantavam muito. Quando eu queimava minha roça, a mata queimava bem, o fogo se espalhava... Porque estava tudo bem seco. No tempo de queimar roça, a mata queimava, as folhas secas caídas no chão queimavam... Hoje não!

A roça não queima, porque a chuva é muita, a chuva não cessa. Eu temo muito essa chuva.

Não vai demorar muito não, talvez agora mesmo chegue o dilúvio. O dilúvio se estenderá muito longe... As águas irão subir, como diziam nossos avôs. As árvores serão extintas, como eles nos disseram. Se não houver mais árvores, diziam eles, nós também seremos extintos! Por isso eu temo, nós vamos desaparecer. Não vai ter terra, apenas água por todos os lados, até a borda da terra. Será muita água pela floresta, por todas as aldeias, pela aldeia Mariry, pelas aldeias do Kamopi... Muita água é o que vai nos exterminar.

Mudanças no tempo, transformações nesta terra

por Dominique Tilkin Gallois e Joana Cabral de Oliveira, respectivamente, professora e doutoranda no Departamento de Antropologia da FFLCH-USP. Membros do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP

As reflexões de Seremete, da aldeia Ytape, e de Muru, da aldeia Kupa’y, sobre as alterações no regime das chuvas na região em que vivem, no noroeste do Amapá, remetem a um amplo espectro de experiências vivenciadas pelos Wajãpi acerca do que nós chamamos de mudanças climáticas. Mudanças que não são novas nem incompreensíveis para eles, considerando o profundo interesse e as finas observações que os Wajãpi costumam fazer a respeito das alterações no ritmo das estações, na cor do céu, na densidade das chuvas e neblinas, assim como na conformação das pedras, que tendem a amolecer e apodrecer, prefigurando a putrefação da terra...

Sinais que evidenciam uma desestabilização na relação entre domínios cosmográficos, podendo anunciar a destruição desta terra, que será, um dia, substituída por outra: nova, viçosa, dura e seca. É dentro desse antigo quadro de apreensão de experiências que hoje, os Wajãpi, como outros povos indígenas, aprendem a lidar como nossos modos de apreender mudanças climáticas, com a expectativa algumas vezes frustrada de encontrar nos nossos saberes um anteparo ao que eles já sabem há muito tempo: esta terra está apodrecendo.

Os depoimentos foram registrados em Wajãpi, em agosto de 2010, e traduzidos por Dominique Tilkin Gallois e Joana Cabral de Oliveira