“Quase não tem mais taquara no mato”
por Papá Miri Poty (Carlos Guarani Fernandes), publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2006-2010 (ISA)
A gente aqui está enfrentando um problema de escassez de taquara. Quase não tem mais taquara no mato para fazer os cestos que vendemos na pista da Rio-Santos. A gente trança a palha de taquara para fazer balaio, e também para fazer telhado de casa. Com ela também se fazia o pari, para pegar peixe. A taquara é muito importante na vida do Guarani. O takuapu, bastão musical que as mulheres batem no chão durante o canto--reza, mborai, é do tronco da taquara. E as mulheres usavam a geléia da taquara para amaciar a pele e o cabelo. As taquaras também oferecem takuaraxó, uma larva que dá no centro do tronco e serve como alimento. Essas larvas só dão a cada 30 anos, e um modo de contar a idade da pessoa é dizer quantas taquaras ela tem. Se tem 30 anos, diz que tem uma taquara, se tem 60, duas. Tem gente que chega a viver três taquaras. Então a taquara tem um ciclo de vida, que a vida do Guarani acompanha. Com 30 anos a taquara morre, seca, depois floresce e dá essa larva, takuaraxó. Pelo que eu entendo, a taquara tem um sumo quando amadurece, e as larvas vão comendo esse sumo. Então a taquara seca e as sementes caem, voam por aí. Os ratinhos, os passarinhos comem as sementes, mas algumas brotam. E o broto vai se espalhando, criando touceira. No ano passado estava tendo takuaraxó de novo, mas a semente não se espalhou. Talvez seja porque o clima da terra está mudando muito, e também porque o pessoal mais jovem não sabe que não pode cortar a taquara nesse período, não sabe ou não se importa, então cortou muita taquara para fazer artesanato. As sementes não puderam amadurecer e se espalhar. E agora está muito difícil encontrar taquara.
O engraçado é que desde que a taquara surgiu no mundo já fizeram coisas que não se devia fazer com ela, por isso ela se transformou em palha. A taquara, que a gente chama Takuá, é uma das filhas de Nhanderu Papá, nosso pai celestial.
Dizem que Anhã, irmão de Nhanderu, queria ter uma companheira e se interessou por uma das filhas de Nhanderu, a linda Takuá. Anhã pediu ao seu irmão que a sobrinha o pudesse acompanhar pelo mundo. Nhanderu aprovou, mas disse que ela jamais poderia entrar na água. Poderia até se molhar, mas nunca mergulhar. Anhã ficou muito feliz, e Takuá o acompanhava em todos os lugares. Teve um dia em que eles foram até uma cachoeira. Anhã mergulhou na água e ela ficou olhando. Então ele a convidou para entrar, mas ela não quis por causa da recomendação do pai. Porém Anhã não acreditou que haveria problema e a puxou pelo braço. Ele disse que o irmão implicava com tudo que é gostoso, por isso a havia proibido. Takuá pediu então que Anhã não a soltasse. Ela estava gostando muito! Mas ele acabou soltando seu braço para que ela experimentasse mergulhar no rio. Não vendo mais a moça, Anhã tentou puxá-la novamente pelo braço e tirou da água um cesto. Ele começou a gritar por ela, mas só havia o cesto, que começou a se desfazer.
Depois Anhã foi até o irmão com o cesto desfeito na mão. Disse que Takuá tinha desaparecido e ficou apenas aquela palha. Nhanderu pediu a palha e trançou de novo o balaio. Fez balainho bem bonitinho de novo e encostou de lado. Disse então a Anhã que agora Takuá não iria mais com ele, pois ela não lhe servia de companheira. Anhã disse que não queria mais aquela mulher porque ela era de palha e era muito complicada. Então Nhanderu disse à Takuá que ela ensinaria as mulheres como ser bela e fazer coisas bonitas. Takuá até hoje vive num lugar de Nhanderu amba, a morada celestial. Chamam Takuá as mulheres de quem o nhe’e, o espírito, vem desse lugar. Elas são muito vaidosas, Takuakypy’y, as irmãs mais novas de Takuá.
A mulher de palha e o barro de fogo
por Valéria Macedo, antropóloga, professora na Unifesp e pesquisadora associada ao NHII/USP
O registro dessas falas – feitas em português com trechos em guarani que Papá foi me ajudando a traduzir – aconteceu em 6 de janeiro de 2011, quando Xaí (modo abreviado de xejaryi, “minha avó”, como eu e muitos na aldeia chamam Doralice) e seu marido Jejokó haviam há pouco chegado à aldeia do Silveira. Ali viveram por décadas, mas agora estão morando no Tekoa Pyau, aldeia vizinha ao Pico do Jaraguá, na capital paulista. Como fazem todos os anos, vieram celebrar o ykarai, ou nhemongarai, ritual de nomeação que aconteceria na noite do dia 9 para o dia 10 de Janeiro.
Puxei conversa se vinham percebendo alguma mudança na vida das plantas, dos bichos, no regime das chuvas ou em quaisquer outros e o porquê. Papá - filho de Doralice, de cerca de 40 anos, morador do Silveira – logo comentou que a taquara tinha sumido do mato, e por isso estava muito difícil fazer artesanato com sua palha, que constitui uma das principais matérias-primas dos cestos e outros objetos que os Guarani na TI Ribeirão Silveira vendem às margens da rodovia Rio-Santos, nas feiras de Bertioga e São Sebastião ou aos turistas que visitam a aldeia. Papá levantou a hipótese da escassez da taquara dever-se a mudanças climáticas, mas sobretudo ele apontou o corte abusivo da planta numa época em que ela se reproduziria, decorrente do desconhecimento ou indiferença sobretudo dos jovens quanto ao seu ciclo reprodutivo.
Por sua vez, o comentário de Papá o remeteu à narrativa mítica protagonizada pela taquara, Takuá, uma das filhas do demiurgo Nhanderu (“Nosso Pai”)Papá que foi transformada em cesto em razão dadisplicência e teimosia por parte de seu esposo e tio Anhã, designação recorrente para agentes agressores e que no enredo é personificado no irmão e antagonista do demiurgo. O abuso de Anhã incorreu em separação e metamorfose, fazendo com que a moça perdesse a feição humana para adquirir a de palha trançada. E aqui Xaí entra na conversa, des-tacando que tanto Takuá como Ka’a – a erva mate – são filhas de Nhanderu e dádivas deste aos Guarani, usufruídas na forma de chimarrão, no caso de Ka’a, e de música/reza (takuapu) e cestaria (ajaká) no caso de Takuá –, sendo todas de grande relevância na vida nas aldeias. Xaí descreve Ka’a e Takuá como habitantes da Primeira Terra, da qual partiram em companhia de Nhanderu com o advento da inundação que pôs fim a ela. Já no mundo de hoje, marcado pela imperfeição e transitoriedade dos sujeitos e das coisas, a erva mate e a taquara constituem alguns dos recursos que trazem a marca da Primeira Terra dos imortais. Diz Xaí que, assim como aquela terra foi destruída, esta também deverá acabar. Não se sabe quando, mas se supõe como isso deve ocorrer, com o aumento do calor e da chuva. Uma chuva de barro e fogo. Essa incontornável destruição, prevista na cataclismologia tupi-guarani, tem como contrapartida uma renovação, em que o mundo velho e sujo submerge e pode dar lugar a outro. Sina análoga teve Takuá, submersa na água e transformada na bonita e transitória palha trançada.