O irmão de Eva
por Vidal - Rio Manjuru (AM), 1996
Antigamente a gente não morria, porque todos nós, índios, morávamos lá, no nusoquen [terreiro de pedra]. Lá foi a primeira terra que nós habitamos. Mas foi depois que existiu a morte, que a irmã dele morreu, quando ele abandonou essa casa primeira, que ele convidou o Adão. Tupana que mandou eles saírem de lá, daquela paragem. "Olha, Adão, chama teu povo para sair daí, daquela paragem”. Ele falou assim: "Adão, chama teu povo para continuar, para ele ir embora, para sair daí. Vai ter muitas frutas pelas matas que vocês vão atravessar. Mas eu não quero que vocês fiquem se entretendo. Eu vou na frente”.
Ele insiste: “Vocês vão ter muita fruta, mas vocês não vão se entreter.” Mas o Adão é teimoso. Quando ele chegou lá, numa fruteira, ele trepou e foi cortar o galho da fruteira. Lá, o povo dele se entreteve, quando eles seguiram, seguiram e seguiram. De noite já, eles encontraram uma sorveira. Estava cheio de fruta, ele derrubou e eles demoraram mais uma vez. Eles já estavam na viagem, mas ficavam se entretendo por aí. Encontraram também uma árvore de caramurizeiro e lá o Adão trepou de novo. E em vez deles seguirem na frente, sem se entreter, não, eles se pararam na fruta até o anoitecer. Lá eles acamparam e, quando foi de dia, seguiram. Encontraram logo uma bacabeira e apanharam muita bacaba. Aí, eles se entretiveram, fizeram um bule de vinho e o beberam todinho. Lá, eles fizeram um barraco, de novo, para dormir.
Quando se lembraram que Deus lhes tinha mandado ir na frente: "Podem ir embora, que tal dia eu vou para lá". Aí nessa lembrança, ele disse: "Eu não disse para vocês irem embora? Para quando eu chegasse, vocês já estarem na beira do rio esperando? Aí, quando eu chegasse, eu ia fazer um barco, uma canoa". O velho veio por onde eles vieram. Por onde eles vieram, Deus passou também. Lá, ele encontrou de novo uma árvore derrubada. "Puxa vida, eles não me ouviram. Bem que eu falei para eles que não se entretiverem nas coisas". Ele andou um pouquinho e lá encontrou, de novo outra árvore derrubada. Lá, ele achou foi barraco. "Aqui, eles ficaram". Ele andou, andou, de novo e lá ele encontrou outra fruteira derrubada. "Puxa vida; o Adão não me ouviu que eu falei para não se entreter com o pessoal dele. Eu disse a ele que, à tarde, eu ia lá com eles. Quando chegasse lá, já ia estar pronto para ir embora”. Ele os encontrou, lá onde tinham se entretido: "Puxa, Adão, você não ouviu o que eu disse para você. Eu falei para você vir embora. Então, eu já vou”. E ele passou na frente e eles ficaram para trás. "Eles ficaram para trás, porque o Adão não ouviu o que eu lhes disse". Durante a sua viagem, ele falou a um passarinho weitapin “Joga no caminho um bocado de serrado para eles não descobrirem mais por onde eu fui”. De repente, o seu rasto ficou coberto e eles não souberam mais por onde segui-lo.
Quando chegou na beira do rio, ele atravessou - ele é poderoso, né? Era um rio bem grande. De repente ele transformou uma pedra numa cachoeira e eles não conseguiram mais passar. Eles chegaram até a beira, lá eles corriam de um lado para o outro e gritavam: "Ei! para onde que vocês foram!? Para onde que vocês foram!? Como que vocês atravessaram!?”. E escutaram o baque; era que estavam fazendo navio para eles irem já, para irem para fora. Porque Deus fez aquele barco para eles irem embora. Mas o Adão, que não ouviu conselho, ele ficou. E ele chamou, chamou. Até que Deus respondeu: "Olha, Adão, eu já não dei conselho para ti? Para tu me seguir com teu povo, mas tu não me ouviste. Tu vais ficar". Ele chamou mais ainda, e Deus respondeu do outro lado: "Olha, Adão: Eu achei melhor que você ficasse mesmo. Porque se nós abandonarmos todos a nossa terra, não iria dar certo. Vocês tem que trabalhar. Vocês tem que voltar. Tu tens que dizer para a tua mulher, para Eva: É melhor que nós vamos embora para nossa casa. Porque ele convidou, mas nós não ouvimos o conselho, então nós temos que voltar, nós temos que trabalhar muito porque nós temos muita plantação [sese motpap ipoityp mikoi]”. Aí, eles cuidaram de ir de novo para lá de onde eles vieram. Se eles tivessem ouvido o conselho de Deus, nós não íamos ficar como nós, na mata. Nós não íamos trabalhar na roça. Mas nós não aproveitamos nadinha.
Aqueles que foram com Deus, estão trabalhando para irem embora. Mas eles não, os que ficaram, se entretiveram na fruta. Ela se lembrou e disse: "Eu tenho um irmão que me deu machado, terçado, ferro de cova, e eu deixei; por isso nós temos que ir embora de novo [voltar]". Disse Eva, convencendo o seu marido.
O passarinho tikwã [Mimus gilvus. Mimidae] estava dizendo, cantando lá em cima do barco deles: "tikwã, tikwã": "Olha, não demora: a chuva já vai arriar". Aí o Imperador, que era o secretário de Deus, o velho, disse: "Mas o que diacho esse passarinho está adivinhando!?". E se pôs a ralhar com ele, achando que estava mais do que abusado da cara. Aí, falou umas coisas para o tikwã. E este respondeu: "Não, esse barco de vocês está para sair, para vocês ir embora". O Imperador falou para ele não cantar mais perto dele. Deus tirou o livro de debaixo do braço. Puxou e aí, o Imperador olhou e disse: Está certo, o que Deus falou está certo. É o dia mesmo. Aí, não demorou e a chuva arriou. Aí criou aquela grande água, lá onde o navio estava. Choveu, choveu, choveu, até que conseguiu sair aquele barco de lá, de cima da terra. Aí eles se embarcaram e foram embora, se escondendo da morte.
Eles foram embora se esconder de muitas doenças. O vento é que transmite a doença: de muito longe vem febre, gripe, tudo quanto é doença. Eles se queriam esconder de tudo isso, mas não teve jeito. Toran
O Imperador dos Sateré-Mawé
por Alba Lucy Giraldo Figueroa
Relatos antigos [sehay poot´i] colhidos em diversas localidades da Área Indígena Andirá-Marau referem-se à epopéia de um deus mítico que os Sateré-Mawé reconhecem como seu ancestral. Numa dessas versões, o nome atribuído ao demiurgo pelos narradores é o de Imperador. O termo Imperador foi utilizado no contexto da língua sateré-mawé, sendo Imperador a única palavra em português do relato original, que tanto para o narrador quanto para os demais ouvintes, todos homens adultos, era considerada uma palavra de sua própria língua. Acrescentaram que o seu nome completo era "Imperador Dom Pedro". Em outros contextos, ocorre a utilização do apelativo morekuat, nome genérico para "chefe", hoje reservado principalmente aos funcionários públicos.
O relato, em suas diversas versões, é fundamental para a compreensão de como se configuram diversos temas entre os Sateré-Mawé, tais como o da identidade étnica, o lugar e o papel atribuído à categoria social dos brancos (karaiwa) na suas representações sobre o mundo e naquelas referentes às relações de poder com as instituições do Estado brasileiro. Fundamentam, por outro lado, o sentimento religioso embutido no senso de territorialidade e na prática política dos Sateré-Mawé. Um ponto comum a todas as versões do relato é o consentimento explicitado pelo Imperador diante da opção da parte dos índios de ficarem nas suas terras.
Os brancos são associados a dois tipos de sapos esbranquiçados: um chamado kaingkaing [não identificado] e outro manka'i [Hyla venulosa - cunauaru]. Também são feitas outras associações: uma com o macaco wahue: "caiarara" [Cebus albitrons unicolor], por ser ele "todo branco e sem-vergonha". A outra é com o tiapu ou tiapii [Cacicus cela], "japiin", [pássaro da família dos Icterideos, Psarocolius]. Neste último caso, o traço destacado é aparentemente, o hábito de habitação coletiva e numerosa, bem como a grande versatilidade canora demonstrada por esse pássaro. Alguns narradores apontam para justificar essa associação a característica multi-instrumental da música ocidental. Os brancos são, assim, representados como descendentes daqueles que seguiram o Imperador e os Sateré-Mawé como descendentes dos que ficaram.
A palavra toran, pronunciada com ênfase pelos narradores depois de uma pausa final, cada vez que narram um mito, demarca uma seqüência temporal durante a qual espera-se que a atitude dos presentes seja de reverente silêncio diante das sehay pot'i: palavras antigas, tidas pelos homens idosos como palavras de bem e de beleza.
As narrativas Sateré-Mawé apresentadas foram recolhidas e editadas por Alba Lucy Giraldo Figueroa (antropóloga, Fundação Nacional de Saúde - Funasa). Fazem parte de sua tese de doutorado Guerriers de l'écriture et commerçants du monde enchanté: histoire, identité e traitement du mal chez les Sateré-Mawé (Amazonie Centrale, Brésil). A primeira narrativa foi traduzida por Silvia de Oliveira e a terceira por Brito de Souza.