De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Arno Vogel, 1978

Ashaninka

Autodenominação
Ashenika
Onde estão Quantos são
AC 1720 (Siasi/Sesai, 2020)
Peru 97477 (INEI, 2007)
Família linguística
Aruak

Os Ashaninka têm uma longa história de luta, repelindo os invasores desde a época do Império Incaico até a economia extrativista da borracha do século XIX e, particularmente entre os habitantes do lado brasileiro da fronteira, combatendo a exploração madeireira desde 1980 até hoje. Povo orgulhoso de sua cultura, movido por um sentimento agudo de liberdade, prontos a morrer para defender seu território, os Ashaninka não são simples objetos da história ocidental. É admirável sua capacidade de conciliar costumes e valores tradicionais com idéias e práticas do mundo dos brancos, tais como aquelas ligadas à sustentabilidade socioambiental.

Localização e população

Habitação ashaninka no alto Juruá. Foto: Arno Vogel, 1978.
Habitação ashaninka no alto Juruá. Foto: Arno Vogel, 1978.

A área de ocupação dos Ashaninka estende-se por um vasto território, desde a região do Alto Juruá e da margem direita do rio Envira, em terras brasileiras, até as vertentes da cordilheira andina no Peru, ocupando parte das bacias dos rios Urubamba, Ene, Tambo, Alto Perene, Pachitea, Pichis, Alto Ucayali, e as regiões de Montaña e do Gran Pajonal.

A grande maioria dos Ashaninka vive no Peru. Os grupos situados hoje em território brasileiro são também provenientes do Peru, tendo iniciado a maior parte de suas migrações para o Brasil pressionados pelos caucheiros peruanos no final do século XIX. Aqui os Ashaninka estão em Terras Indígenas distintas e descontínuas, todas situadas na região do Alto Juruá (veja ao lado em Terras Habitadas).

Afluente da margem direita do rio Juruá, o Amônia nasce em território peruano e garante em seu curso brasileiro condições de navegação relativamente favoráveis. Na época das chuvas, uma viagem, da fronteira internacional à confluência com o Juruá, situada no município de Marechal Thaumaturgo, leva mais ou menos dez horas de navegação em canoa motorizada.

Hoje, nas terras baixas do rio Amônia, encontramos a Reserva Extrativista do Alto Juruá (margem direita) e um assentamento do Incra (margem esquerda), enquanto a parte alta abriga em ambos os lados a Terra Indígena Kampa do Rio Amônia.

Família ashaninka pescando no rio Amônia. Foto: Márcio Ferreira, 1989.
Família ashaninka pescando no rio Amônia. Foto: Márcio Ferreira, 1989.

Os dados censitários realizados por antropólogos que trabalharam com esse povo apresentam uma grande variação segundo os autores, que salientam a dificuldade de estabelecer um total populacional. No Peru, os dados variam, segundo as fontes e as datas das pesquisas, de 10 mil a mais de 50 mil indivíduos. Não obstante essas estimativas hipotéticas, todos os autores destacam a importância dos Ashaninka em termos demográficos e apresentam o grupo como um dos maiores contingentes populacionais nativos da Amazônia peruana e mesmo da bacia amazônica em geral.

De acordo com o censo de 1993 do Instituto Nacional de Estatística e Informatica (INEI), o povo ashaninka, no Peru, soma 51.063 indivíduos distribuídos em 359 comunidades, constituindo a população nativa mais numerosa da Amazônia peruana (Zolezzi 1994: 15). No Brasil, os levantamentos realizados por antropólogos, organizações indigenistas e Funai revelam também grandes variações devidas à falta de registros. A essas dificuldades técnicas acrescenta-se uma forte tendência à migração, característica da sociedade tradicional ashaninka, que dificulta a realização de levantamentos mais precisos. Apesar das dificuldades, a ONG CPI-AC estimou a população ashaninka vivendo em território brasileiro em cerca de 869 pessoas.

Segundo a CPI-AC, a população ashaninka do rio Amônia representava em 2004 um total de 472 indivíduos, ou seja, mais ou menos metade dos Ashaninka vivendo no Brasil. Mais de 80% dessa população vive hoje na aldeia Apiwtxa ou nas suas proximidades (menos de trinta minutos de canoa motorizada). Por via fluvial, a aldeia Apiwtxa situa-se a aproximadamente 80 quilômetros de Marechal Thaumaturgo e 350 de Cruzeiro do Sul. Em linha reta, a distância é, respectivamente, de 30 e 180 quilômetros. Essa aldeia foi criada em 1995, na parte baixa da TI, nas proximidades do limite com a Reserva Extrativista do Alto Juruá e o assentamento do Incra.

Ainda de acordo com dados da CPI-AC, a TI do Rio Breu possuía em 2004 uma população de 114 Ashaninka. Na TI Igarapé Primavera havia nessa data 21 pessoas e na TI Kampa do Rio Envira 262 indivíduos.

Nome e língua

Fabricação de flechas. Aldeia do Samuel. Foto: Arno Vogel, 1978.
Fabricação de flechas. Aldeia do Samuel. Foto: Arno Vogel, 1978.

Os Ashaninka pertencem a família lingüística Aruak (ou Arawak). Eles são o principal componente do conjunto dos Aruak sub-andinos, também composto pelos Matsiguenga, Nomatsiguenga e Yanesha (ou Amuesha). Apesar de existirem diferenças dialectais, os Ashaninka apresentam uma grande homogeneidade cultural e lingüística.

Ao longo da história, os Ashaninka foram identificados sob vários nomes: Ande, Anti, Chuncho, Pilcozone, Tamba, Campari. Todavia,  são mais conhecidos pelo termo Campa ou Kampa, nome freqüentemente utilizado por antropólogos e missionários para designar os Ashaninka de maneira exclusiva ou os Aruak sub-andinos de forma genérica - com exceção dos Piro e dos Amuesha. Ashenĩka é a autodenominação do povo e pode ser traduzida como 'meus parentes', 'minha gente', 'meu povo'. O termo também designa a categoria de espíritos bons que habitam “no alto” (henoki).

História no Peru

Foto: Göteborgs Etnografiska Museum, s/d.
Foto: Göteborgs Etnografiska Museum, s/d.

A história do contato entre os Ashaninka e o mundo dos brancos é muito variável segundo as regiões. No Peru, alguns grupos locais foram contatados desde o final do século XVI com a atuação missionária do regime colonial, enquanto outros só iniciaram o contato com a sociedade nacional no fim do século XIX, no período do caucho e da borracha.

Podemos dividir a história do contato dos Ashaninka com os brancos em dois grandes períodos: a época colonial, marcada principalmente pelas incursões missionárias na Selva Central, e o período do Peru independente, caracterizado pela expansão da borracha que moldou várias regiões amazônicas e pela atuação de novos segmentos da sociedade branca junto às populações indígenas. Se os contatos com os brancos mudaram profundamente a vida dos Ashaninka, a história desse povo indígena não começa com a chegada dos europeus.

Comércio e guerra na Selva Central

Os Ashaninka estão presentes na Selva Central peruana há pelo menos 5 mil anos. O território dos Aruak sub-andinos foi fronteiriço da parte central do Império incaico, enquanto na região amazônica os limites entre os Aruak e os grupos Pano eram menos definidos (ambos sendo chamados pelos Inca de Anti). Em vários trabalhos, a antropóloga francesa Renard-Cazevitz (1985; 1991; 1992) mostrou como esses três conjuntos se estabeleceram relações de vizinhança que tomavam, segundo as circunstâncias, o caráter amistoso ou guerreiro.

Embora em pequena escala, antes da chegada dos espanhóis, existiam redes comerciais contínuas em tempo de paz entre os povos das terras baixas e os Incas, e os Ashaninka participavam ativamente desse comércio. No período estival, delegações de índios amazônicos subiam às cidades incas mais próximas com produtos da floresta: animais, peles, penas, madeira, algodão, plantas medicinais, mel… Em troca desses bens, os Anti voltavam aos seus territórios com tecidos, lã e, sobretudo, objetos de metal (jóias de ouro e prata, machados…). Muitos desses produtos eram distribuídos nas redes de parentesco e no comércio inter-amazônico. Além de seu valor econômico, adquirir bens raros e portanto preciosos era também um meio de garantir a paz, estabelecendo alianças políticas entre os negociantes e até laços de parentesco.

A despeito desses intercâmbios, períodos de paz alternavam com as guerras e o Império aspirava sempre conquistar a selva e seus habitantes. Apesar de um aparato militar superior e de esforços contínuos, as tentativas expansionistas do Imperio incaico em direção ao oriente foram inúteis e desastrosas. Quando a ameaça inca se intensificava, os "povos da floresta", guerreiros e experientes em seu meio (com vales abruptos, matas e rios de difícil acesso), mobilizavam suas amplas redes, baseadas no comércio interno nas terras baixas.

Anteriores ao Império Inca, as bases das redes comerciais e guerreiras inter-amazônicas operaram até o final do século XIX, começando progressivamente a desabar com a penetração mais intensa dos brancos na Amazônia no período da borracha. Nesse sistema comercial e guerreiro, os Ashaninka e, de uma maneira geral, os Aruak sub-andinos, ocupavam um lugar de destaque. Sua situação privilegiada resultava não só de sua localização estratégica entre as terras altas e os grupos Pano – que lhes permitia ativar a mobilização dos "povos da floresta" quando a ameaça Inca ou branca se intensificava –, mas também do controle da produção do principal produto envolvido no comércio amazônico: o sal, chamado tsiwi entre os Ashaninka do rio Amônia.

Para os "povos da floresta", o sal era um produto altamente cobiçado pelo sabor que dava à comida e por ser o meio de conservação de alimentos no clima quente e úmido das terras baixas. Situadas nas proximidades do rio Perene, em território ashaninka, as minas das colinas do Cerro de la Sal constituíam tanto a principal fonte de abastecimento para os povos amazônicos, como o centro político, econômico e espiritual dos Aruak sub-andinos. Enquanto seu padrão de assentamento tradicional é disperso, nas proximidades do Cerro de la Sal estabeleceu-se uma concentração maior de diferentes grupos Amuesha, Matsiguenga, Nomatsiguenga e, sobretudo, Ashaninka.

Nesse cenário, os Anti impediram durante séculos a penetração em massa do não-amazônico em suas terras, mantendo a fronteira entre as terras altas e as terras baixas relativamente estável.

Colonização e revoltas indígenas

Contrariamente a outras sociedades indígenas da Amazônia, o povo ashaninka tem uma longa história de contato com o mundo dos brancos, iniciada desde o final do século XVI. Depois da ocupação da Costa e da Serra, os espanhóis conquistam o Império Inca e iniciam sua penetração em direção à Amazônia. Os jesuítas Font e Mastrillo foram os primeiros a estabelecer um contato com os Ashaninka, em 1595. Explorando a Selva Central a partir da cidade serrana de Andamarca, as duas cartas enviadas pelos jesuítas a seus superiores constituem a primeira fonte documentada sobre um grupo de índios Pilcozone, hoje identificado como Ashaninka.

Quarenta anos depois do primeiro contato realizado pelos jesuítas, os franciscanos iniciam a evangelização das populações indígenas da Selva Central com uma entrada mais ao norte, próxima à região do Cerro de la Sal. Em 1635, Jerónimo Jimenez inaugura a chegada dos franciscanos, entrando em território ashaninka e fundando a missão de Quimiri (atual cidade de La Merced). Em 1637, ele organiza a primeira viagem de exploração do rio Perene, mas encontra a morte, vítima de uma tocaia ashaninka. Em 1648, atraídos pelo mito de Paititi que apresenta o lugar como rico em ouro, uma expedição de missionários e aventureiros se dirige ao Cerro de la Sal, mas é novamente dizimada por um ataque ashaninka.

Apesar das derrotas sucessivas, as entradas dos espanhóis continuam. A desarticulação do sistema de trocas nativo, através da instalação de missões em sítios estratégicos, está presente pela primeira vez na empresa evangelizadora de Biedma, franciscano identificado como o primeiro explorador da região peruana de montaña.

Depois de obter, em 1671, uma licença para realizar novas entradas na região do Cerro de la Sal, Biedma organiza uma primeira expedição em 1673, abrindo novamente a missão de Quimiri, até então perdida, e cria Santa Cruz de Sonomoro, controlando desse modo as principais rotas de acesso às terras altas. Em 1674, Biedma funda a missão de Pichana com o objetivo de controlar o trânsito dos nativos entre os rios Ene e Tambo na direção do Cerro de la Sal. Deixada aos cuidados do Padre Izquierdo, a população ashaninka de Pichana, liderada pelo cacique Mangoré, apoiado pelos chefes do Cerro de la Sal, revolta-se contra a administração franciscana, que tenta proibir a poligamia, e mata os missionários.

Partidário do uso da força para conquistar os índios, Biedma morre em 1687 numa outra expedição para fundar uma missão no rio Tambo. A morte trágica de Biedma, provavelmente vítima da vingança dos Piro que, no ano anterior, tinham sido atacados pelos Conibo que acompanhavam o missionário, fecha praticamente o rio Tambo à penetração branca até o início do século XX.

Cem anos depois dos primeiros contatos entre os Ashaninka e os brancos, os resultados da penetração espanhola são praticamente nulos. Os esforços dos colonizadores continuam no século XVIII com a intensificação da pressão sobre o Cerro de la Sal. Em algumas missões, os padres instalam forjas e apresentam-se como os únicos provedores de instrumentos de metais para atrair e manter sob controle a população nativa. Ignorado na época de Biedma, o pedido franciscano à Coroa para a construção de fortes na região concretiza-se com a criação, em 1737, do primeiro forte na missão de Santa Cruz de Sonomoro.

As missões maiores podiam agrupar centenas de nativos, mas a proporção da população indígena aldeada é mínima. Muitos índios fogem abandonando as missões, outros preferem manter-se isolados dos brancos, enquanto a maioria estabelece contatos esporádicos, geralmente através de um chefe, com os missionários para obter instrumentos de metal e outras mercadorias. Apesar dessa constatação geral, o suporte progressivo da Coroa aos franciscanos, tanto em homens armados como em dinheiro, aumentou a pressão espanhola na Selva Central e a multiplicação das missões causou um impacto importante no modo de vida das populações indígenas, fundamentando as bases das revoltas nativas. Na visão indígena, a vida nas missões é também associada à morte e ao terror das doenças.

O padrão de assentamento imposto pelas missões traduziu-se primeiro pela sedentarização e a convivência obrigatória em aldeias multi-étnicas de uma população heterogênea caracterizada por laços de afinidade, mas também por conflitos e rivalidades internas. A perda da liberdade, essência da vida ashaninka, intensificou-se com a proibição da poligamia. Como assinalou Bodley (1970: 4-5), durante os primeiros séculos da conquista espanhola, o papel dos chefes foi determinante nos sucessos e fracassos das missões. Ora, enquanto a distribuição de mercadorias ao chefe permitia aos missionários exercer um certo controle sobre a população, o comportamento dos caciques desafiava o ideal cristão. Atributo de prestígio para os chefes, a poligamia era considerada pelos padres franciscanos como um comportamento social escandaloso, revelador de uma caótica promiscuidade primitiva.

Nesse contexto, a insurreição indígena dirigida por Juan Santos Atahualpa ocupa um lugar de destaque na história peruana e merece uma atenção especial. Através ela, os índios da Selva Central e, principalmente, os Ashaninka, recuperam sua autonomia política e a integralidade de seu território tradicional, progressivamente cedido aos brancos. Apresentado como um mestiço andino ou um índio quéchua, Atahualpa teria recebido uma educação religiosa em Cuzco e viajado pela Europa e África (Angola e Congo) com um padre jesuíta. Ele chega a Quisopango, no coração do Gran Pajonal, em março de 1742, acompanhado por um chefe Piro. Auto-proclamado Inca ou “filho de Deus”, herdeiro legítimo do Império roubado pelos espanhóis, Atahualpa pretende restaurar seu Reino perdido e expulsar os intrusos com a ajuda de seus irmãos indígenas, unidos na luta contra o branco.

Com a notícia da chegada do Messias libertador, mensageiros indígenas são enviados do Gran Pajonal e se espalham pela Selva Central e nas terras altas vizinhas. Os índios respondem à mensagem e, rapidamente, as missões franciscanas são abandonadas. Ashaninka, Amuesha, Piro, Conibo e outros grupos convergem para o Gran Pajonal animados pela esperança de ver o filho de Deus. Índios serranos juntam-se ao movimento e a revolta pan-indígena se organiza na Selva Central. Juan Santos Atahualpa convida os espanhóis e africanos a se retirarem para as terras altas. O convite é recusado e o confronto armado se torna inevitável.

Entre 1742 e 1752, os enfrentamentos entre índios e tropas espanholas se multiplicam, oferecendo aos rebeldes uma série de vitórias que garantiram a autonomia política dos índios da Selva Central peruana e a inviolabilidade de seus territórios tradicionais durante mais de um século. O ideal revolucionário de Atahualpa não se limitava às terras baixas, mas pretendia reunir todos os índios contra os "não-índios”.

Durante as décadas que seguem a revolta de Atahualpa e dos Anti, a Selva Central peruana encontra-se sob domínio dos índios. Os espanhóis limitam-se a controlar as rotas de acesso às terras altas e a proteger suas posições na Serra. No Baixo Ucayali, os missionários estabelecem um comércio com os grupos Pano ribeirinhos, mas o território ashaninka é inacessível aos brancos. Quando o Peru conquista a sua independência em 1822, a Amazônia permanece uma região em larga medida desconhecida; uma terra misteriosa e ameaçadora cuja integração é necessária à consolidação do novo Estado-nação.

Os Ashaninka e a economia caucheira

A reconquista da Selva Central peruana organiza-se progressivamente a partir da região de Chanchamayo em direção ao Cerro de la Sal e do Perene. Embora prossiga o trabalho iniciado pelos espanhóis nos séculos anteriores, a nova colonização peruana adota um rumo um pouco diferente, guiada, principalmente, por interesses econômicos e políticos e, secundariamente, religiosos ou civilizatórios.

Primeiro passo da reconquista, uma expedição militar peruana é organizada em 1847 em direção ao Cerro de la Sal. Apesar da resistência indígena, os militares, acompanhados por colonos andinos, fundam o forte de San Ramón, estabelecem novos povoamentos e retomam progressivamente o controle das fundições ashaninka.

A colonização do vale do Chanchamayo, do Perene e do Cerro de la Sal é estimulada pelo governo através de uma política que facilita a migração de origem andina e de incentivos à imigração estrangeira.

Em 1891, o governo peruano concede 500.000 ha de terra situados nas margens do rio Perene à Peruvian Corporation. A empresa britânica é encarregada do desenvolvimento da área, principalmente, através de plantações de café nas quais centenas de Ashaninka são progressivamente incorporados como mão-de-obra.

Deslocados para o Gran Pajonal e as terras baixas ou reunidos nas colônias agrícolas, os Ashaninka cedem pouco a pouco frente à presença branca que se intensifica. No final do século XIX, os peruanos controlam o Cerro de la Sal e começam a produção industrial do produto. Enquanto a perda do sal anuncia a dependência econômica, uma história dramática atinge as terras baixas da Amazônia peruana e modifica profundamente a vida das populações indígenas: o boom do caucho.

A procura pela borracha, espécie nativa da Amazônia, modificou profundamente a história da região e teve conseqüências dramáticas para as populações indígenas. As baixas terras peruanas, assim como o Acre, foram o teatro da dizimação de vários povos indígenas. Essa exploração inicia-se na década de 1870 e atinge os Ashaninka na região do Alto Ucayali. É importante salientar que a principal produção de borracha nessa área é o caucho (Castilloa elastica) e não a seringa (Hevea brasiliensis). De qualidade inferior à seringa, o caucho distingue-se pelo caráter itinerante de sua produção, que necessita de uma mobilidade permanente da força de trabalho à procura das árvores fornecedoras.

Contrariamente ao seringueiro, assentado no seringal e percorrendo diariamente as estradas de sua colocação para recolher o látex da hévea, a extração do caucho exige a derrubada da árvore e conduz a uma expansão territorial permanente da força de trabalho, à medida que a produção de cada área é esgotada. Se os métodos de extração são diferentes e o impacto ambiental mais destruidor no caso do caucho, a economia da borracha, tanto seringueira como caucheira, está baseada num mesmo sistema econômico: o aviamento ou a habilitación.

Na habilitación como no aviamento, toda a economia da borracha é estruturada através de uma cadeia hierarquizada de dívidas ligando os diversos intermediários. Na sua base, ou seja, na relação patrão/produtor, o dinheiro não circula e serve apenas como referencial abstrato para o estabelecimento da dívida, reativada permanentemente através da aquisição e fornecimento de novas mercadorias em troca da borracha produzida. Os preços fictícios são determinados arbitrariamente pelo patrão com o objetivo de manter seus trabalhadores sob seu domínio através do controle da dívida que nunca deve ser cancelada. Sistema moderno de escravidão, o aviamento amarra o seringueiro ao seringal e ao patrão seringalista. De modo análogo, a habilitación estabelece, através de uma dívida eterna, uma relação de dependência entre o patrão caucheiro e seus trabalhadores. Embora importante, a diferença entre a exploração do caucho e da seringa reside, basicamente, na mobilidade que se torna necessária no sistema caucheiro, mas a estrutura econômica que fundamenta e orienta a produção da borracha, de uma maneira geral, é idêntica.

A exploração caucheira na Amazônia peruana está associada às figuras sanguinárias dos grandes patrões como Carlos Scharf ou Julio Cesar Arana. Este último possuía um "império" na região de Iquitos, mas a história elegeu Carlos Fitzcarraldo como o "Rei do caucho". Fitzcarraldo refugiou-se entre os índios do Gran Pajonal depois de ser acusado de espionagem para o Chile e condenado à morte pelas autoridades peruanas. Interpretado pelos Ashaninka como o "Messias" de volta, e mais especificamente, como a personalização de um espírito amachénka enviado por Pawa (o demiurgo ashaninka), Fitzcarraldo consegue juntar sob seu controle vários Ashaninka a quem ele retribui com armas. Aos Campa se juntam os Piro e alguns mestiços, constituindo uma "verdadeira milícia" que permite a Fitzcarraldo controlar a produção de caucho em uma vasta área. A morte de Fitzcarraldo durante um naufrágio no Alto Urubamba em 1897 encerra as aventuras de um personagem responsável pelas correrias sanguinárias que marcaram a história da região. A exploração do caucho provocou a dizimação de muitas populações nativas. Além de usar as rivalidades tradicionais entre os grupos, Fitzcarraldo promoveu correrias intra-étnicas entre os Ashaninka, rompendo a proibição da guerra interna ao grupo.

A partir de 1912, a economia caucheira entra progressivamente em crise com a queda dos preços da borracha no mercado internacional. As correrias institucionalizadas pelos patrões caucheiros vão diminuindo durante as primeiras décadas do século XX, até desaparecerem. Com os avanços da colonização peruana na região amazônica, muitos Ashaninka passam a trabalhar em várias atividades econômicas promovidas pelos brancos: fazenda, agricultura, café, caça, madeira, caucho…

Frente à violência da economia caucheira, muitos Ashaninka também lutaram com as armas, alguns migraram para as regiões brasileiras e bolivianas fronteiriças, outros encontraram nas missões protestantes e evangélicas uma forma de proteção. 

“Gringos” e “comunistas”

Para muitos Ashaninka, as missões norte-americanas que se multiplicaram na Amazônia peruana durante o século XX constituíram uma forma de proteção contra os patrões caucheiros e o trabalho escravo. Em 1921, Stahl, missionário Adventista do Sétimo Dia, cria uma missão no Alto Perene e anuncia o Apocalipse e a chegada de Cristo à terra. O messianismo atrai progressivamente cerca de dois mil índios das regiões do Perene, Tambo, Pango e Gran Pajonal (Bodley 1970: 114).

O evento anunciado não acontece e pouco a pouco a maior parte dos Ashaninka deixa o missionário. Nas décadas seguintes, as missões multiplicam-se. Através do Summer Institute of Linguistics, do South American Indians Missions, e sobretudo do Seventh-Day Adventist, a presença missionária norte-americana intensifica-se entre os Ashaninka e atinge números recordes.

A tradição messiânica indígena também foi acionada no envolvimento de grupos Ashaninka com o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR). A chegada do MIR, em 1965, dividiu as comunidades, mas alguns Ashaninka acabaram incorporados às tropas revolucionárias. A luta armada foi breve e os rebeldes foram rápida e severamente reprimidos pelos militares com uma violência extrema: aldeias bombardeadas com napalm, torturas e execuções. Guiados pelas profecias de um xamã, os Ashaninka viram em Lobatón, líder do movimento na região, a volta de Itomi Pawa, o filho de Deus, e a esperança de um futuro melhor (Brown & Fernandez 1991).

Na década de 1980, os movimentos de guerrilha revolucionários, dissidentes da esquerda peruana, entraram novamente em território Ashaninka. Fundado em 1969 por Guzman, o Sendero Luminoso (SL) iniciou sua propaganda maoísta na Selva Central, competindo com o Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA), remanescente do MIR. Lutando entre si pelo controle da população rural e o comércio de cocaína que sustenta suas ações, os dois movimentos forjaram as bases da revolução armada contra o governo peruano que organizou, progressivamente, a contra-insurreição.

O estado de guerra que caracterizou a Amazônia peruana no final da década de 1980 e início dos anos 90 teve conseqüências desastrosas para os Ashaninka: assassinatos de lideranças, torturas, endoutrinamento forçado das crianças, treinamento militar, execuções… Em 1990, o SL dispõe do controle absoluto da região do Ene e do Alto Tambo e, no ano seguinte, cerca de dez mil Ashaninka passaram a viver sob o domínio da guerrilha (Espinosa 1993b: 80-82).

Frente a essa situação de violência, a reação ashaninka foi ativa e diversa. Alguns colaboraram, outros se retiraram das áreas de conflito e muitos lutaram com suas próprias armas, organizando a contra-ofensiva e declarando guerra aos "comunistas" do MRTA e do SL. Através de novas formas de organização política representadas pelas associações indígenas modernas, os Ashaninka reelaboram os antigos modelos de confederações guerreiras, usados com sucesso para conter o expansionismo inca ou espanhol. Frente à ameaça, a aliança política dos Aruak sub-andinos organizou-se e institucionalizou, mais uma vez, a guerra contra um inimigo comum.

História no Brasil

Foto: Göteborgs Etnografiska Museum, s/d.
Foto: Göteborgs Etnografiska Museum, s/d.

 Atualmente, encontramos os Ashaninka em território brasileiro no Alto Juruá. Oriundos do Peru e localizados hoje nas margens dos rios Amônia, Breu, Envira e no igarapé Primavera, a história da ocupação ashaninka na região é, no entanto, difícil de estabelecer com exatidão. As informações da historiografia regional são vagas e fornecem poucas indicações sobre a presença desse povo em território brasileiro.

O padre francês Tastevin realizou várias viagens ao Alto Juruá nas primeiras décadas do século XX e localizou grupos ashaninka no pé das colinas de Contamana, nas cabeceiras do rio Juruá-Mirim, afluente da margem esquerda do Alto Juruá. Em seu mapeamento dos grupos indígenas do Acre, baseado em fontes de viajantes e cronistas, Castelo Branco (1950: 8) afirma que os Kampa já perambulavam nessa região no final do século XVII e no início do XVIII.

A população hoje localizada no rio Amônia provém de diversos horizontes e é fruto de migrações sucessivas. Além dos deslocamentos populacionais no sentido Peru-Brasil, via Alto Juruá ou alguns afluentes do Ucayali ocorreram também ao longo do século XX várias migrações dos Ashaninka do Envira e do Breu em direção ao rio Amônia. Do mesmo modo, embora algumas famílias ashaninka permanecessem de maneira estável no rio Amônia a partir da década de 1930, existem laços de parentesco que unem os Ashaninka do Amônia àqueles localizados tanto em território peruano como em outras terras brasileiras.

Segundo hipótese comum entre os estudiosos dessa sociedade, a presença ashaninka no Alto Juruá brasileiro (como também na região boliviana do Madre de Dios) é resultante da atuação dos caucheiros peruanos, que no final do século XIX e início do século XX os trouxeram do Ucayali para essas regiões fronteiriças. Mas nem todos os Ashaninkas corroboram essa versão.

Os Ashaninka confirmam que, no final do século XIX e início do XX, o rio Amônia era também o habitat de índios Amahuaka, seus inimigos tradicionais e considerados índios "brabos". Para os patrões caucheiros e seringalistas, a presença dos Amahuaka era uma ameaça permanente à exploração da borracha e uma preocupação constante. Conhecidos como excelentes guerreiros, os Ashaninka serviram os interesses dos patrões brasileiros e peruanos que promoveram estrategicamente as hostilidades tradicionais entre os dois povos. Armados e estimulados pelos brancos, que lhes ofereciam mercadorias, os Ashaninka dizimaram e afugentaram os Amahuaka. Os Ashaninka que moram atualmente no rio Amônia não viveram diretamente as correrias contra os Amahuaka, mas lembram os relatos de seus ascendentes.

Se os Ashaninka participaram da extração do caucho e da proteção dos seringais, não integraram, no entanto, a economia extrativista da seringa, contrariamente aos outros grupos indígenas do Acre. Entretanto, incorporaram o sistema do aviamento que regulava as transações comercias na região.

Abundantes em seringa, as margens do curso inferior do Amônia, do município de Marechal Thaumaturgo até os igarapés Artur (margem esquerda) e Montevidéu (margem direita), onde se encontrava a última colocação do antigo seringal Minas Gerais, foram progressivamente ocupadas pelos seringueiros nordestinos a partir do final do século XIX. Além de ser rico em caça, pesca e madeiras nobres, o Alto Amônia brasileiro, dos igarapés mencionados até a fronteira internacional, caracteriza-se pela ausência de seringueiras, sendo essa parte alta pouco cobiçada pelos brancos até a década de 1970 e a intensificação da exploração madeireira.

A organização do trabalho e o crescimento populacional dos seringais necessitavam mão-de-obra exterior que pudesse abastecer os barracões em alimentos e outros produtos, assim como assegurar a permanência do seringueiro na sua colocação. Os Ashaninka do rio Amônia integraram as redes da economia da borracha, oferecendo novos serviços aos patrões. Além do caucho progressivamente em declínio, a principal atividade desempenhada pelo grupo até a década de 1970, em troca de mercadorias, era a caça de animais silvestres que fornecia tanto a carne como as peles, valorizadas no comércio amazônico. 

Exploração madeireira e luta pela terra

Distantes dos centros urbanos e dos eixos rodoviários, os Ashaninka não sofreram diretamente e de maneira intensiva os efeitos da expansão com a economia agropecuária que caracterizou a “segunda conquista” do Acre na década de 1970. Se os “paulistas” (nome pelo qual eram qualificados os novos colonos vindo do sul do Brasil) também adquiriram vários seringais na região do Alto Juruá para transformá-los em fazendas destinadas à criação de gado, o rio Amônia ficou relativamente afastado dessa frente de expansão, apesar de suas margens também terem sofrido desmatamentos para esse tipo de economia.

Se algumas famílias ashaninka foram trabalhar com patrões em fazendas, plantando roçados ou “limpando” o campo para a criação de gado, a crise da borracha e a pressão territorial em busca de novos recursos caracterizaram-se no Médio e Alto rio Amônia, essencialmente, pela exploração madeireira. Essa atividade desenvolveu-se a partir da década de 1970 e intensificou-se nos anos 80, multiplicando o contato dos Ashaninka com a sociedade branca regional.

A abundância de madeira de lei, principalmente na parte ocupada pelos Ashaninka, valeu regionalmente ao Amônia o apelido de “rio da madeira”. A intensificação da exploração madeireira na década de 1980, com invasões mecanizadas e cortes em grande escala, trouxe conseqüências desastrosas para o meio ambiente e a população nativa. A atividade madeireira afetou profundamente a organização social e a reprodução cultural dos Ashaninka do rio Amônia.

Do corte inicial à venda industrializada, o sistema madeireiro no rio Amônia envolvia diferentes tipos de protagonistas: o extrator, o intermediário (ou atravessador), os patrões de Cruzeiro do Sul e os compradores europeus. Os Ashaninka e os posseiros brancos atuavam na base desse sistema como simples mão-de-obra. Essa força de trabalho era utilizada para abrir as estradas na mata, localizar e cortar as árvores em toras, que eram em seguida roladas até os igarapés. Esse trabalho era geralmente realizado no "verão", durante a estação seca.

Segundo os Ashaninka, os patrões, geralmente, anotavam as contas num caderno, mas “sempre roubavam”. Os índios eram enganados na metragem e na cubagem da madeira. Nessas transações, os Ashaninka afirmam que uma tora de mogno podia ser trocada por um quilo de sal ou de sabão.

Diversas empresas compraram madeira oriunda do rio Amônia, mas a Marmude Cameli Ltda. foi a principal responsável pelos danos causados ao meio ambiente e à população ashaninka, na medida em que se envolveu em todas as invasões da Terra Indígena, promovendo a retirada de toras de mogno e cedro em escala industrial. Mais de ¼ da TI sofreu direta ou indiretamente com a atividade madeireira intensiva, que afetou profundamente a vida dos índios. A área mais atingida está localizada entre os igarapés Taboca, Revoltoso e Amoninha, onde ocorreram três invasões mecanizadas – em 1981, 1985 e 1987 – que abriram um total de cerca de 80 quilômetros de estrada e ramais na mata.

Os Ashaninka referem-se a essa época como um período de penúria e de fome, contrapondo-a à situação de fartura que existia no Alto Amônia quando eles viviam mais isolados dos brancos. Durante a década da madeira, o ritual do piyarentsi era freqüentemente invadido pelos posseiros, acusados de embriagar os índios com cachaça e de abusar sexualmente das mulheres. A música e as danças indígenas eram desprezadas pelos brancos, que levavam seus gravadores e impunham suas preferências musicais.

Em razão da presença dos brancos, a freqüência do piyarentsi e do kamarãpi diminuiu; alguns Ashaninka também deixaram de usar a kushma e passaram a vestir-se como os regionais; a língua nativa era discriminada e muitos homens, constantemente solicitados no corte de madeira ou em outras tarefas a serviço dos brancos, deixaram progressivamente de fazer seu artesanato, de tal forma que certas peças, exclusivamente produzidas por eles, como o arco, as flechas e o chapéu, quase desapareceram.

Além dessa redução da atividade cultural do povo, o período de exploração madeireira é também considerado pelos Ashaninka como o momento de mais doenças e mortes. O contato intensivo com os brancos caracterizou-se pela multiplicação das doenças: gripe, pneumonias, coqueluche, sarampo, hepatite, febre tifóide, cólera... Embora não existam dados quantitativos que permitam avaliar com exatidão o impacto dessas doenças na população indígena, os Ashaninka afirmam que elas se tornaram endêmicas, causando várias mortes, atingindo, principalmente, as crianças e dizimando muitas famílias.

Todavia, se os índios se referem ao “tempo da madeira” como um período de grandes dificuldades e de muitas inquietudes, eles ressaltam também que foi ele que deu origem à organização da comunidade e à união do grupo na luta pelos seus direitos. Nesse processo, a luta pela demarcação da terra é considerada um momento decisivo que lhes permitiu livrar-se da dependência dos patrões e reconquistar sua liberdade.

A partir de meados da década de 1980, a crescente mobilização do povo ashaninka do rio Amônia integra-se ao contexto do indigenismo acreano e caracteriza-se por uma intensificação dos conflitos entre índios e brancos, que atingiram seu auge no final dos anos 1980 e no início de 90.

O "tempo dos direitos"

Ao longo do século XX, os Ashaninka do rio Amônia viveram uma situação histórica diferente do grupo localizado no rio Envira. Por exemplo, a ameaça dos Amahuaka foi progressivamente vencida na época da borracha e a exploração madeireira em grande escala levou o contato com os brancos a um grau de intensidade desconhecido entre os Ashaninka do rio Envira, cujo território se encontra mais distante da pressão da sociedade nacional.

O indigenismo oficial começa realmente a atuar no Amônia a partir de meados da década de 1980, no auge da exploração madeireira. Nesse contexto, a intervenção da Funai é vista como o início de uma nova era: “o tempo dos direitos”, marcado pela conscientização política, a luta territorial e a expulsão dos brancos.

No início de 1985, uma equipe do órgão indigenista, vinda de Brasília, é enviada à área para dar prosseguimento ao trabalho de delimitação e demarcação da Terra Indígena, iniciado em 1978. Por coincidência, o Grupo de Trabalho (GT) chega ao local no momento da segunda invasão madeireira. Na volta da equipe, a Funai encaminha uma denúncia ao IBDF, predecessor do Ibama, e à Polícia Federal, que enviam representantes à área, apreendendo as 530 árvores abatidas ilegalmente e multando os responsáveis.

Em 2000, os representantes da Marmude Cameli Ltda. foram condenados, em primeira instância, a indenizar a comunidade ashaninka do rio Amônia em cerca de R$ 5,5 milhões. Além desse valor, os réus também foram condenados a pagar cerca de R$ 6 milhões ao Fundo de Direitos Difusos “a título de custeio de recomposição ambiental”. No entanto, os réus recoreram da condenação e o processo ainda tramita na Justiça.

Conflitos com posseiros

Segundo os Ashaninka, o período de 1987 a 1992 representou uma época de grandes inseguranças, ao mesmo tempo caracterizada pela organização progressiva dos índios em defesa de seus direitos, principalmente à terra, e pela multiplicação dos confrontos com os posseiros brancos.

Para romper a dependência econômica em relação aos patrões madeireiros, os Ashaninka inauguraram, a partir de 1986, uma cooperativa. Uma série de proibições é então estabelecida: corte de madeira, caçadas com fins comerciais e com uso de cachorros, presença de brancos no ritual do piyarentsi. Isso intensifica a hostilidade dos posseiros, que passam a veicular boatos infundados sobre a família Pianko, principal liderança na cooperativa, procurando vinculá-la à guerrilhas de esquerda e ao tráfico de cocaína.

A região do Alto Juruá é conhecida como uma das principais rotas do narcotráfico. Oriunda da Colômbia ou diretamente do Peru, a cocaína entra em território brasileiro usando os varadouros e os rios da região. Mas é importante distinguir o uso da folha de coca e o consumo de cocaína. Embora ela seja derivada da folha, a cocaína passa por todo um processo químico para se transformar em droga. Os Ashaninka, por sua vez, mascam tradicionalmente as folhas de coca (koka) junto com uma espécie de cipó (txamero) e um pó branco (ishico) extraído de uma pedra encontrada nas cabeceiras dos pequenos igarapés e usada como adoçante. Junto com o tabaco (sheri), a coca é consumida nos rituais do piyarentsi e do kamarãpi, mas seu uso é muito freqüente e não se restringe a essas ocasiões. Além de sua dimensão cultural (é importante acrescentar isso), os Ashaninka dizem também que mascar coca permite resistir ao cansaço e superar a fome. Entre os xamãs, que no cumprimento de suas atividades passam por períodos de restrições alimentares, o uso de coca é indispensável. O cultivo é realizado por cada família no pátio da casa ou no roçado e, mesmo que sua utilização seja intensa, a produção é sempre muito restrita e responde às necessidades de cada família. No caso de um xamã, os maiores plantios alcançam apenas algumas dezenas de pés.

Os Ashaninka do rio Amônia sempre rejeitaram o tráfico de cocaína em suas terras. As lideranças indígenas afirmam que receberam várias ofertas para incentivar a comunidade a realizar plantios em grande escala ou simplesmente a liberar a passagem da droga pela área.

Em 1990 e 1991, os Ashaninka multiplicaram as denúncias às autoridades. Várias cartas foram encaminhadas à Funai, ao Ibama, ao Incra, à Polícia Federal e à Procuradoria Geral da República. Nelas, os índios pedem providências para agilizar o processo de demarcação, indenizar e assentar os posseiros fora dos limites da reserva. Denunciaram as invasões da Terra Indígena, o corte ilegal de madeira, as caçadas com uso de cachorros e com objetivos comerciais, o tráfico de droga, as ameaças de morte contra as lideranças e seus aliados... As cartas salientavam também a situação de emergência e o risco iminente de graves conflitos entre os Ashaninka e os posseiros brancos.

Em agosto de 1991, em viagem realizada a Brasília, as lideranças ashaninka foram acompanhadas pela antropóloga Margarete Mendes e a advogada Ana Valeria Araújo Leitão, assessora jurídica do Núcleo de Direitos Indígenas (NDI, uma das instituições que deram origem ao ISA). Na capital federal, o grupo teve audiência com os mais altos funcionários da Funai, Ibama, Secretaria do Meio Ambiente, Procuradoria Geral da República e Polícia Federal.

A viagem a Brasília foi decisiva para acelerar o processo de demarcação e teve um grande impacto no Alto Juruá. As ameaças de morte intensificaram-se, geralmente feitas pelos posseiros e seus familiares mais revoltados contra os índios. Em Brasília, o NDI agilizou as formalidades para a demarcação da área. Essa ONG entrou em contato, através de um diplomata inglês e com o auxílio da GAIA Foundation, com a Overseas Development Agency (ODA), agência financiadora do governo britânico, e conseguiu o financiamento necessário para realizar a demarcação da TI. O trabalho foi realizado de 3 a 23 de junho de 1992, com uma participação importante dos Ashaninka. Após os trabalhos de demarcação, a Terra Indígena Kampa do rio Amônia, com 87.205 ha, foi homologada pelo Vice-Presidente da Republica, Itamar Franco, no dia 23 de novembro de 1992.

Vítimas da exploração madeireira, principalmente na década de 1980, com as invasões mecanizadas das empresas de Cruzeiro do Sul, os Ashaninka do rio Amônia conseguiram, após anos de luta e de muitos esforços, expulsar os patrões e os posseiros brancos de suas terras. Mas até hoje lutam contra as reincidentes invasões de madeireiros, princialmente provenientes do Peru.

Cosmologia e xamanismo

Entre os Ashaninka, encontramos as características que definem os sistemas cosmológicos xamânicos presentes nas terras baixas da Amazônia: universo dividido em vários níveis; a existência de um mundo invisível por trás do mundo visível, o papel do xamã como mediador entre esses mundos etc. Talvez a particularidade ashaninka resida na sua concepção extremamente dualista do universo, definindo claramente as fronteiras entre o Bem e o Mal.

Segundo o antropólogo Gerald Weiss, o universo indígena, organizado verticalmente, compreende um número indeterminado de níveis superpostos. Assim, de baixo para cima, encontramos, sucessivamente: Šarinkavéni (o “Inferno”), Kivínti (o primeiro nível subterrâneo), Kamavéni (o mundo terrestre), Menkóri (o mundo das nuvens) e outras camadas que cobrem a terra e compõem o céu (1969: 81-90). O conjunto dos níveis celestes é denominado henóki, mas esse termo também é utilizado como sinônimo de céu, cuja denominação adequada é Inkite.

De acordo com Weiss, mesmo esses níveis sendo inter-relacionados, os moradores de cada um deles experimentam seu mundo de uma maneira sólida. Assim, por exemplo, se tomamos como referência a nossa Terra (Kamavéni), residência dos homens mortais, o céu visível a partir dela constitui apenas o chão do nível imediatamente superior (Menkóri) cuja maior parte permanece fora da nossa percepção visual. Embaixo de Kamavéni, existem dois níveis: Kivínki (-1), residência de “bons espíritos”, e Šarinkavéni (-2) que, segundo o autor, pode ser qualificado como o “Inferno dos Campa”. Weiss salienta, no entanto, que o nível -1 é mencionado por poucos Ashaninka, muitos considerando que, abaixo da terra, só existe Šarinkavéni: o mundo dos demônios.

A cosmologia Ashaninka complica-se quando Weiss identifica os habitantes das diferentes camadas do universo, procurando explicar o papel desempenhado por cada um deles, suas diversas manifestações e suas relações com os Ashaninka. No céu, ou mais especificamente, em cima (henóki), vivem os bons espíritos. Essa categoria é chamada de amacénka e também ašanínka, ou seja, é tomada como extensão da própria autodenominação do povo.

Esses espíritos são hierarquizados conforme o poder que lhes é atribuído e sua importância na cosmologia. Os mais poderosos são denominados Tasórenci e são considerados como verdadeiros deuses. Os Tasórenci têm o poder de transformar tudo através do sopro e formam o panteão ashaninka que criou e governa o universo. No topo dessa hierarquia está Pává (Pawa), o mais poderoso dos Tasórenci, pai de todas as criaturas do universo. Geralmente invisíveis aos olhos humanos, alguns Tasórenci podem, no entanto, aparecer na Terra revestindo-se de forma humana.

Os espíritos do Mal e os demônios, chamados genericamente Kamári, habitam o nível mais inferior, onde vivem sob a autoridade suprema de Koriošpíri. Mas esses espíritos maléficos não residem apenas em Šarinkavéni. Embora essa primeira camada da hierarquia apresente a maior concentração desses seres e abrigue os mais poderosos entre eles, os espíritos nefastos também se encontram, em vários lugares, no mundo habitado pelos homens. Na “nossa” Terra, o principal demônio é Mankóite, que tem sua moradia nas ribanceiras freqüentemente encontradas ao longo dos rios em território ashaninka. Ele se caracteriza por uma forma humana, mas geralmente permanece invisível. Um encontro com ele anuncia a morte. É interessante notar que, segundo Weiss, o Mankóite vive de maneira semelhante ao branco: suas casas têm os mesmos objetos, possuem mercadorias etc.

Assim, a espiritualidade ashaninka apresenta um caráter extremamente dualista. No Cosmos hierarquizado por Pává, os espíritos são, geralmente, bons (amacénka ou ašanínka) ou maus (kamári). Tanto uns como outros manifestam sua presença de diferentes maneiras na Terra habitada pelos humanos. O šeripiari (xamã) atua como mediador entre os homens e essas diferentes camadas do cosmos. Com o auxílio do tabaco, da coca e do kamárampi (ayahuasca), ele procura comunicar-se com os espíritos bons e combater as forças diabólicas, mas também pode dispor seu poder a serviço do Mal (feitiçaria). Dessa forma, o plano em que vivem os homens não é habitado exclusivamente por seres humanos, animais e plantas. Ele apresenta-se como um mundo em equilíbrio frágil, onde os homens vivem constantemente assediados pelo confronto entre o Bem e o Mal.

No rio Amônia

Os Ashaninka do rio Amônia também relatam uma visão do mundo construída a partir de uma estrutura do universo verticalmente hierarquizada e composta de camadas superpostas. O nível subterrâneo é associado à morte e aos espíritos do mal: kamari. Os índios pouco falam sobre esse mundo onde moram pessoas estranhas, algumas com um modo de vida semelhante ao do branco (casas, carros...) e que conseguem respirar na água. Os Ashaninka afirmaram que nenhum deles vive lá e que não gostam de pensar nesse lugar perigoso porque poderiam acordar os espíritos maléficos e chamá-los para o nosso mundo. Todos eles afirmam, no entanto, que essa camada existe e situa-se “embaixo” (isawiki) da nossa Terra.

Embora esse mundo esteja associado à morte e tenha sido qualificado por alguns como o “Inferno”, ele não é sempre apresentado como tal. Segundo o relato de Shomõtse, atualmente o Ashaninka mais idoso da aldeia Apiwtxa, o “Inferno” não se situaria nesse nível subterrâneo, mas estaria localizado no céu ou, mais exatamente, “em cima” (henoki), e não “embaixo” (isawiki). Lá existe um “grande buraco com água fervendo numa grande panela”. O dono desse lugar é Totõtsi, cuja principal tarefa é cozinhar os Ashaninka pecadores. A presença do “Inferno” em cima também se encontra em outros relatos, enquanto alguns informantes acreditam que esse lugar esteja situado debaixo da Terra.

Como no caso exposto por Weiss, os Ashaninka do rio Amônia apresentam o céu como composto de várias camadas. No topo, em inkite, encontra-se Pawa, o Deus todo poderoso. Na camada imediatamente inferior, estão os Tasorentsi, que são vistos com características divinas: “eles são como um Deus, pegam qualquer coisa, sopram e transformam em outra coisa”. Num nível abaixo deles, sempre em henoki, encontram-se outros espíritos bons que, como os Tasorentsi, são os “verdadeiros filhos de Deus”. Segundo alguns informantes, essa camada do céu é chamada Pitsitsiroyki. É onde Pawa seleciona entre os Ashaninka aqueles que reconhece como filhos. Segundo os Ashaninka do rio Amônia, esses “espíritos bons” que vivem em henoki podem todos ser considerados como itome Pawa (filhos de Pawa) e são chamados amatxenka ou asheninka.

Para os Ashaninka do rio Amônia, Pawa é apresentado como o Deus criador de todo o universo. Às vezes, os Ashaninka se referem a ele como Paapa (pai). Direta ou indiretamente apoiado pelos seus filhos, ele criou a Terra, a floresta, os rios, os animais, os homens, o céu, as estrelas, o vento, a chuva... Na mitologia nativa, muitas dessas criações são, na realidade, transformações de pessoas ashaninka, filhos de Pawa, em outra coisa e foram realizadas através do sopro. Assim, nos tempos da criação do mundo, os animais, as plantas, os astros ou certos lugares ou fenômenos tinham uma aparência humana e eram, de uma maneira geral, filhos de Pawa. Em função do comportamento desses primeiros Ashaninka na Terra, o Deus e/ou os Tasorentsi transformaram-nos em outra coisa, ruim ou boa.

Sol e Lua

Na mitologia ashaninka, o gênero de Sol e Lua são opostos ao português, sendo o primeiro feminino e o segundo masculino. Segundo Weiss, Pawa teria nascido de uma relação sexual de Lua com uma mulher ashaninka que morreu queimada ao dar à luz a Sol. Desse modo, Lua é considerado o pai de Pawa. Antes de subirem ao céu, durante muito tempo Sol e Lua viveram na terra.

Lua ofereceu a mandioca (kaniri) aos Ashaninka que, até aquele momento, só se alimentavam de térmitas. Todavia, apesar de ser o pai de Sol e também considerado como Deus, Lua ocupa um status inferior a Sol em razão de suas atividades que o afastam da vida e o aproximam da morte. Ser canibal, Lua alimenta-se dos mortos e o destino dos Ashaninka é serem devorados por ele.

Essa relação de filiação entre a Lua e o Sol parece um pouco problemática entre os Ashaninka do rio Amônia. Kashiri não é sempre reconhecido como pai de Pawa, na medida em que muitos informantes afirmam, categoricamente, que este sempre existiu e criou tudo, inclusive Lua. Este é visto como um ser ambíguo, ao mesmo tempo considerado como um Deus fornecedor da mandioca (kaniri), mas também associado a um ser canibal que briga periodicamente com Sol (eclipses) e é associado ao mundo dos mortos.

Segundo os Ashaninka do rio Amônia, após a vida na Terra, os mortos (kamikari) vão, num primeiro momento, para o mundo “embaixo” (isawiki), onde permanecem por um tempo. Nas fases de lua nova, Kashiri ingere-os e leva-os para Pitsitsiroyki, onde os entrega a uma estrela. Esta é encarregada de lavá-los, perfumá-los e guardá-los até a visita de Pawa que, periodicamente, vem escolher entre os mortos os Ashaninka que ele reconhece como filhos legítimos e deseja guardar perto de si.

Os brancos

Essa hierarquização do Cosmos e a dicotomia entre o Bem e o Mal são fundamentais para entender o lugar atribuído pelos Ashaninka aos “outros” e, principalmente, aos brancos. Toda a organização do Cosmos nativo está baseada nesse princípio estrutural composto por dois elementos ao mesmo tempo opostos e complementares. Assim, enquanto os Ashaninka são idealmente associados ao Bem, o branco mantém laços estreitos com os espíritos maléficos e as forças do mal.

A visão do branco (wirakotxa) aparece com destaque na mitologia nativa. O primeiro wirakotxa de que os Ashaninka do rio Amônia afirmam ter conhecimento é o espanhol que surge de um lago, em decorrência de um ato de desobediência do Inka ao seu pai Pawa, e vem perturbar a ordem do universo.

Antigamente, o wirakotxa morava dentro de um lago. Aí, Inka foi pescar com outro Ashaninka. Era de madrugada. Aí, escutou galinha no fundo e disse: “Rapaz, vamos pegar isso”. “Não precisa não, fica assim mesmo, não vamos mexer não”. No outro dia, a mesma coisa. De novo, ouviu galinha, ouviu cachorro latir no fundo (...). Aí, Inka foi ver Pawa. “Não mexe não, meu filho”. Mas Inka não escutou e foi mariscar [pescar]. Escutava galinha assim bem pertinho, escutava cachorro. “Vou pegar galinha”. Aí, botou anzol com banana, pedaço assim (...) Aí, saiu galinha. Aí, botou de novo, saiu cachorro. Aí, escutou de novo barulho. Pegou banana e saiu Branco. Aí, wirakotxa subiu na Terra. Aí, Pawa ficou brabo e perguntou: “Por que tu foi buscar wirakotxa?”. “Papai, eu fui pegar galinha e wirakotxa saiu”. “Eu não quero esse branco pra cá junto com nós. Eu deixei ele pra lá mas tu gostou dele, agora pode ficar pra tu! Agora, eu vou embora e tu vai ficar com wirakotxa e trabalhar pra ele” (Alípio, Ashaninka morador do rio Amônia)

O fato de Inka ter pescado a galinha e o cachorro antes do branco é considerado sinal de advertência de Pawa ao seu filho, para que ele interrompesse sua atividade infeliz. Esses animais, trazidos pelo branco, eram desconhecidos dos Ashaninka, que têm um acervo muito variado de mitos para explicar o surgimento da maioria dos animais. Estes eram, inicialmente, Ashaninka que perderam sua aparência humana e foram transformados em animais por Pawa ou pelos Tasorentsi. Todavia, a galinha (txaapa) e o cachorro (otsitsi) nunca foram Ashaninka. Eles surgiram do lago onde eram os fiéis companheiros do branco. Em alguns casos, a comparação com o cachorro foi usada por informantes para qualificar genericamente o branco e/ou seu comportamento: “feio como um cão”, “sovina como cachorro”, “fedorento como cachorro”.

O surgimento do wirakotxa na Terra é portanto o resultado da desobediência do Inka a Pawa, que havia inicialmente separado os Ashaninka dos brancos. Na mitologia indígena, a irresponsabilidade do Inka é mais um exemplo de uma longa lista de erros cometidos pelos filhos de Pawa nos tempos originais. O conjunto desses erros explica a situação atual dos Ashaninka e as imperfeições do seu mundo.

A importância desse evento é reforçada por muitos que consideram que foi em decorrência direta desse ato que o Deus Criador subiu ao céu. Cansado das sucessivas desobediências de seus filhos, Pawa teria decidido deixá-los sozinhos na Terra e morar no céu, onde permanece até hoje, usufruíndo de um mundo perfeito. Outros dizem que Pawa ainda ficou durante um tempo na terra, onde tentou construir um muro para separar os Ashaninka dos brancos.

De uma maneira geral, a visão que os Ashaninka do rio Amônia constroem do branco pode assemelhar-se à categoria genérica dos espíritos malévolos, kamari. Como eles, o branco é associado à morte e às doenças (matsiarentsi). Os índios acreditam que as doenças são o resultado desses seres nefastos ou da atividade de um xamã maldoso através da feitiçaria. Frente às perigosas e desconhecidas doenças dos brancos (mãtsiari wirakotxa), a sabedoria do sheripiari é ineficaz.

Cultura material

Ashaninka vestindo a kushma e outros paramentos. Foto: Mauro Almeida, s/d.
Ashaninka vestindo a kushma e outros paramentos. Foto: Mauro Almeida, s/d.

Os Ashaninka contam que sempre tiveram canoas (pitotsi), casas (pãkotsi) e roçados (owãtsi) com várias qualidades de mandioca (kaniri). Antigamente, as casas eram diferentes, tinham paredes e ficavam diretamente assentadas no chão. Hoje, são construídas sobre pilotis. Embora os brancos regionais também morem em casas elevadas, as dos Ashaninka, geralmente, não têm paredes ou divisões e são cobertas com palha, enquanto os wirakotxa ribeirinhos usam alumínio.

Diferentemente da maioria dos outros grupos indígenas das terras baixas sul-americanas, os Ashaninka sempre usaram roupas. Veste tradicional ashaninka, a kushma constitui um elemento importante na diferenciação étnica. Cabe notar que a palavra “kushma” é de origem quéchua e, embora ela seja também usada pelos índios, os Ashaninka têm o termo “kitharentsi”, que é utilizado para se referir tanto à vestimenta como ao tear e ao tecido.

Foram as filhas de Pawa que ensinaram as mulheres ashaninka a tecer e a fazer a vestimenta. Para os homens, o decote tem uma forma de “V”, enquanto o das mulheres é em “U”. A roupa masculina apresenta listas verticais coloridas, que são obtidas após o tingimento da linha de algodão. Na kushma feminina, as linhas são horizontais. Os motivos realizados a partir dos corantes vegetais também são diferentes. Na túnica dos homens, eles são tecidos e representam detalhes corporais de animais: cara de arara, rabo de bico-de-jaca, características de larvas, pássaros, peixes... Na kushma feminina, os desenhos são pintados e representam pássaros, larvas, peixes e, sobretudo, onças e cobras... Depois de um certo tempo de uso, ambas as vestimentas são tingidas com casca de mogno e lama, o que lhes dá uma cor marrom/preta. A diferença mais significativa entre as duas kushma é que a túnica do homem ainda é realizada tradicionalmente com o algodão (ãpe) tecido no tear, enquanto as mulheres usam tecido industrializado.

Mulher ashaninka confeccionando uma kushma. Foto: Beto Ricardo , s/d.
Mulher ashaninka confeccionando uma kushma. Foto: Beto Ricardo , s/d.

O chapéu (amatherentsi) é feito com uma palha de palmeira de cocão (kõtaki) e enfeitado com penas de arara. Se seu uso na Terra Indígena é restrito, mas ao prepararem sua bagagem para as viagens fora da aldeia, as lideranças, junto com a kushma, geralmente, não esquecem o chapéu.

O txoshiki é um tipo de colar confeccionado com várias espécies de sementes nativas. Usados a tiracolo em diagonal, com muitas voltas, eles são, geralmente, enfeitados com adornos (thatane) que caem nas costas. Esses adornos são feitos com sementes, cascas de castanhas ou penas (arara, papagaio, tucano, mutum...). Entre os vários modelos de colares, o kenpiro reproduz os desenhos e as cores da serpente e é considerado o txoshiki original e o mais tradicional pelos Ashaninka.

Entre os instrumentos musicais, os Ashaninka destacam os tambores (tãpo) e a flauta de tipo sõkari. O tambor, de tamanho variável, é feito de madeira de cedro. O tronco é escavado e recoberto dos dois lados com couro de porquinho, queixada ou de várias espécies de macaco (preto, prego, barrigudo...), mais raramente, de arraia. O couro é amarrado à madeira com uma corda de fibra natural (imbaúba). A batida é feita com baquetas confeccionadas em madeira ou com o osso de um macaco, geralmente o fêmur. O sõkari é uma flauta de pã composta por cinco canos de bambu, amarrados com uma corda feita a partir da linha de algodão. O bambu utilizado é de uma espécie que os índios chamam de “shawope” e que vão buscar no Alto Juruá peruano. O sõkari é geralmente tocado pelos homens mais velhos e tem uma simbólica importante. Os informantes contam que ele é usado para homenagear Pawa e se distingue das outras flautas, como o showiretsi ou totama que são tocadas no piyarentsi, simplesmente para dançar.

Rituais

Pintura facial em mulher ashaninka no rio Amônea. Foto: Mauro Almeida, 1983.
Pintura facial em mulher ashaninka no rio Amônea. Foto: Mauro Almeida, 1983.

Entre os Ashaninka, tanto a bebida feita de ayuaska como o ritual são chamados kamarãpi (vômito, vomitar). A cerimônia é sempre realizada à noite e pode se prolongar até de madrugada. Um Ashaninka pode consumir o chá sozinho, em família ou convidar um grupo de amigos, mas, geralmente, as reuniões são constituídas de grupos pequenos (cinco ou seis pessoas). O kamarãpi se caracteriza pelo respeito e silêncio e contrasta fortemente com a animação festiva do ritual piyarentsi. A comunicação entre os participantes é mínima e apenas os cantos, inspirados pela bebida, vêm romper o silêncio da noite. Contrariamente ao piyarentsi, esses cantos sagrados do kamarãpi não são acompanhados por nenhum instrumento musical. Eles permitem aos Ashaninka comunicarem-se com os espíritos, agradecerem e homenagearem Pawa.

O kamarãpi é um legado de Pawa, que deixou a bebida para que os Ashaninka adquirissem o conhecimento e aprendessem como se deve viver na Terra. As respostas a todas as perguntas dos homens estão acessíveis com o aprendizado xamânico, que é realizado através do consumo regular e repetitivo da bebida, durante anos. A formação do xamã (sheripiari), no entanto, nunca pode ser considerada como concluída. Se a experiência lhe confere respeito e credibilidade, ele está sempre aprendendo. É através do kamarãpi que o sheripiari realiza suas viagens nos outros mundos e adquire a sabedoria para curar os males e as doenças que afetam a comunidade.

A cura realizada através do kamarãpi é eficaz apenas para as doenças nativas causadas, geralmente, por meio da feitiçaria. Contra as “doenças de branco” os Ashaninka só podem lutar com o auxílio de remédios industrializados.

O piyarentsi, por sua vez, possui uma dimensão mais marcadamente festiva, mas também possui dimensões econômicas, políticas e religiosas. O ritual constitui o principal modo de sociabilidade e de interação social entre os grupos familiares. Nos piyarentsi discute-se de tudo: casamentos, brigas, caçadas, problemas com os brancos, projetos etc.

Em Apiwtxa, a organização de um ou vários piyarentsi ocorre com muita freqüência, geralmente todos os finais de semana. O convite para beber tem o caráter de uma obrigação social e rejeitá-lo é considerado uma ofensa. Após contar com a ajuda do homem para arrancar a mandioca, a mulher é a única responsável pela preparação da bebida.

Descascada, lavada e cozida, a mandioca (kaniri) é posta numa grande gamela (intxatonaki), onde é desmanchada com uma pá de madeira (intxapatari). Uma pequena porção é posta na boca e mastigada até adquirir consistência de pasta, momento em que é jogada na gamela. Este processo se repete com toda a mandioca. A gamela é então recoberta por folhas de bananeira e a massa deixada em fermentação de um a três dias. O convite é feito, geralmente, pelo marido, que passa de casa em casa avisando aos outros chefes de família que haverá piyarentsi.

Todos os Ashaninka da aldeia participam da festa, em que bebem grandes quantidades de piyarentsi. Embriagar-se nessa ocasião é sempre um objetivo e motivo de orgulho. Os homens demonstram sua resistência física, passando dias e noites bebendo, indo de casa em casa, sem dormir. No auge da embriaguez, os Ashaninka tocam suas músicas, dançam, riem. Afirmam que fazem piyarentsi para homenagear Pawa, que se alegra vendo os seus filhos felizes. Foi durante uma reunião de piyarentsi que Pawa reuniu seus filhos, embebedou-os e realizou as grandes transformações antes de deixar a Terra e subir ao céu (Mendes 1991: 108).

Hoje, se as assembléias comunitárias aparecem como novos rituais gerados pela situação de contato, é ainda no piyarentsi que se fortalece tanto a política interna como externa. Além de conversarem sobre os assuntos do cotidiano da comunidade, no piyarentsi os Ashaninka discutem os projetos e é também aí que tentam conscientizar os parentes recém-chegados do Peru, explicando com orgulho a história da comunidade e sua organização.

Organização social

Foto: Terri Vale de Aquino, 1982.
Foto: Terri Vale de Aquino, 1982.

A luta contra a exploração madeireira e pela demarcação da Terra Indígena causou transformações importantes na organização social e política dos Ashaninka do rio Amônia. Desde o início do século XXI, a maioria dos índios vem mudando seu padrão de assentamento, tradicionalmente disperso pelas margens dos rios e igarapés, para juntarem-se numa comunidade. Essa mudança afetou a organização política interna. Novas instituições, como a cooperativa e a escola, foram criadas para concretizar as reivindicações indígenas e ocupam hoje um lugar central na vida social dos índios.

Com a criação da associação Apiwtxa, os novos líderes que surgiram durante a luta pela demarcação da área tornaram-se os mediadores entre os Ashaninka e os diferentes setores do indigenismo (Funai, ONGs, Governo do Estado etc.) e desenham hoje os caminhos da política interétnica.

Essas mudanças na política interna e na organização social dos Ashaninka do rio Amônia resultam de fatores externos, mas também revelam a dinâmica e a criatividade da própria sociedade ashaninka, que incorporou esses novos modelos reinterpretando sua estrutura social tradicional. Assim, por exemplo, o agrupamento na aldeia Apiwtxa juntou várias famílias em torno de Antônio Pianko, mas o padrão de assentamento permaneceu organizado em pequenos grupos domésticos. De modo semelhante, os novos líderes ocupam um espaço privilegiado na política do contato interétnico, mas não substituíram os mecanismos da antiga "chefia", cujas atribuições também são limitadas e garantem a liberdade de cada família.

Com um padrão de assentamento tradicionalmente disperso, a organização social ashaninka é muito flexível. A unidade social é a família nuclear, geralmente composta pelo marido, esposa e seus filhos. Essas famílias nucleares podem agrupar-se em torno de um homem mais velho (um pai ou um avô) constituindo um grupo doméstico. Esses pequenos agrupamentos de casas compõem-se, geralmente, de uma a seis famílias nucleares ligadas por relações de afinidade e consangüinidade. Os grupos domésticos caracterizam-se por uma grande reciprocidade e pela cooperação econômica entre as diferentes famílias nucleares, tais como trabalhos em conjunto nos roçados e repartição da caça. Eles podem ser considerados como a maior unidade política estável da sociedade ashaninka (Weiss 1969: 40).

Um conjunto de grupos domésticos pode agrupar-se sob a influência de um "chefe" para formar o que os Ashaninka chamam de nampitsi e que Mendes define como “território político” (Mendes 1991: 26). O tamanho de um nampitsi é muito variável e suas fronteiras não são sempre bem delimitadas. Os grupos domésticos que compõem esses territórios políticos podem morar distantes uns dos outros ou agrupar-se numa comunidade. Um nampitsi também pode coincidir com os limites de um grupo doméstico ou com uma família extensa. No seu interior, a cooperação econômica entre os grupos é mínima, embora seus membros possam juntar-se para participar de pescarias ou caçadas coletivas.

O ritual do piyarentsi é o principal modo de interação social no interior do nampitsi. A estrutura desses territórios políticos é muito flexível, assegurando ao mesmo tempo a independência e a liberdade de seus componentes e uma solidariedade política interna. Vários fatores contribuem para a ampliação, redução ou fissão de um nampitsi: prestígio do "chefe", mortes, conflitos entre famílias, casamentos... O sistema de troca tradicional ayõpari permite o estabelecimento de alianças entre diversos nampitsi, criando uma solidariedade étnico-política maior que pode ser mobilizada em função das circunstâncias históricas e até estender-se a outros grupos indígenas.

É importante salientar que a figura do "chefe" não é sempre encontrada na sociedade ashaninka e a instituição da chefia, quando existe, também apresenta uma grande flexibilidade. Quando existe, o "chefe" pode ser identificado pelo termo kuraka (ou curaca), de origem quéchua, ou pela palavra ashaninka pinkatsari.

Entre os Ashaninka do Amônia, essas duas definições estão presentes. Todavia, muitos afirmam que o pinkatsari não é necessariamente um "chefe" ou kuraka. O pinkatsari é um ãtarite (“aquele que sabe”), mas um guerreiro (owayiri), um xamã (sheripiari) ou um homem velho que se destaca por sua sabedoria e experiência também pode ser qualificado de pinkatsari, sem necessariamente ser kuraka ou "chefe". Dessa forma, podemos levantar a hipótese de que não existe palavra na língua ashaninka para designar "chefe", o termo de origem quéchua kuraka sendo o único unanimemente reconhecido para qualificar essa função.

Política interétnica e desenvolvimento sustentável [vídeo]

Milton Nascimento com Benki Pianko Ashaninka, por ocasião da visita do cantor à aldeia Apiwtxa. Foto: Beto Ricardo, 1989.
Milton Nascimento com Benki Pianko Ashaninka, por ocasião da visita do cantor à aldeia Apiwtxa. Foto: Beto Ricardo, 1989.

A cooperativa criada pelos Ashaninka do rio Amônia começou a funcionar em 1987, com recursos da Funai. Os Ashaninka também receberam, entre novembro de 1989 e fevereiro de 1990, um recurso da Gaia Foundation (ONG ambientalista britânica) que lhes permitiu adquirir um batelão e dispor de um pequeno capital de giro. Posteriormente foram apoiados pelo BNDES.

No início dos anos 1990, os Ashaninka passaram a investir na produção de artesanato, cujo comércio era favorecido naquele contexto pela visibilidade política e midiática da Aliança dos Povos da Floresta. Durante a ECO-92 no Rio de Janeiro, por exemplo, se vendeu artesanato ashaninka no âmbito da Aliança. Nos anos seguintes, firmaram parcerias com a loja paulistana Amoa-Konoya, com a empresa americana Aveda e com a Funai (lojas Artíndia e projeto Moitará, com exposição e comércio do artesanato em Brasília).

Até hoje, a produção e venda de artesanato representam de 70 a 80% do capital da cooperativa e são a principal atividade comercial dos Ashaninka. Todavia, a despeito do capital advindo com esse comércio, o acesso dos Ashaninka aos manufaturados permanece, por sua própria escolha, restrito a produtos indispensáveis: sal, munição, linha de pescar, anzóis, terçados, sabão.

Para oferecer um dispositivo legal capaz de negociar e executar projetos, bem como defender os interesses dos Ashaninka do rio Amônia, em 1991 foi criada a associação Apiwtxa, oficialmente registrada em 1993.

O processo de afirmação da etnicidade e de revitalização cultural aparece de maneira significativa na área de educação escolar através da idéia de “educação diferenciada” e do projeto promovido desde 1997 pelas lideranças da Apiwtxa de criar uma “escola tradicional”. Recentemente, os Ashaninka também se apropriaram do uso do vídeo para registrar momentos importantes da comunidade e seus conhecimentos tradicionais. A escola e o vídeo, instrumentos da sociedade ocidental, adquiriram com os Ashaninka do rio Amônia um novo significado. Assim, os instrumentos dos brancos foram reinterpretados pelos índios e servem hoje para fortalecer suas tradições culturais e afirmar a identidade étnica.

Depois da demarcação da Terra Indígena, em 1992, os Ashaninka do rio Amônia passaram também a executar uma série de projetos de desenvolvimento sustentável com diferentes parceiros do indigenismo, em busca de alternativas para a exploração madeireira. Iniciaram uma política ambiciosa de proteção e recuperação ambiental de seu território e procuraram comercializar alguns de seus recursos naturais, produzidos de maneira sustentável. Assim, no novo contexto do indigenismo, marcado pelo crescimento das preocupações ambientais, os Ashaninka do rio Amônia encontraram novos caminhos para proteger seu meio ambiente e, ao mesmo tempo, tirar benefícios de seus recursos naturais.

"A gente luta mas come fruta", vídeo de Valdete Pinhanta como parte do projeto Vídeo nas Aldeias, mostra o manejo agroflorestal realizado pelos Ashaninka da aldeia APIWTXA no rio Amônia, Acre. No filme eles registram, por um lado, seu trabalho para recuperar os recursos da sua reserva e repovoar seus rios e suas matas com espécies nativas, e por outro, sua luta contra os madeireiros que invadem sua área na fronteira com o Peru.

Junto com a CPI (Centro de Pesquisa Indigenista, ONG que já não mais existe), a associação ashaninka elaborou um projeto para o aproveitamento de óleos e essências de palmeiras nativas da região. Mais de cinqüenta produtos, entre óleos, folhas, polpas, castanhas e outros foram pesquisados e catalogados durante os três anos do projeto.

Em 1994, ainda no âmbito da Aliança dos Povos da Floresta, os Ashaninka obtiveram da embaixada dos Países Baixos um projeto de vigilância e conservação ambiental que financiou uma infra-estrutura mínima para a proteção do território indígena contra as invasões. Em 1995 e 1996, os Ashaninka do rio Amônia experimentaram a coleta de sementes de árvores nativas. Voltada para o mercado de reflorestamento, a produção foi encaminhada ao IPEF (Instituto de Pesquisa e Estudos Florestais), da ESALQ (Escola Superior de Agricultura Luis de Queiroz), em Piracicaba (SP). Pelo acordo de parceria, o instituto era encarregado da comercialização das sementes e, após a cobrança de uma taxa de 25% para as despesas de armazamento e conservação, repassava o valor restante para a Apiwtxa de acordo com as vendas.

Em 1999, ao mesmo tempo em que coletavam castanha de murmuru (palmeira: astrocaryum sp) para a empresa Tawaya, os Ashaninka trabalharam com um cipó denominado regionalmente de “espera-aí” (uncaria tomertosa). A produção de cerca de 25 toneladas foi encomendada e vendida para a empresa Biosapiens, que tem uma representação em Cruzeiro do Sul.

No ano 2000, em cooperação com a Secretaria de Coordenação da Amazônia do Ministério do Meio-Ambiente (SCA-MMA), com o governo do Estado do Acre e com financiamentos do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável), a Apiwtxa implementou um projeto de apicultura.

Ainda em 2000, os Ashaninka do rio Amônia encaminharam um ambicioso projeto de “manejo de sistemas agroflorestais e recuperação ambiental de áreas degradadas” ao PD/A (Projetos Demonstrativos tipo A, um dos sub-programas do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil).

A preocupação dos Ashaninka com o meio ambiente e o uso sustentável de seus recursos também é visível em relação à fauna. Após os danos causados pela exploração madeireira, as pescarias e as caçadas predatórias realizadas pelos posseiros brancos, os Ashaninka iniciaram por conta própria um plano de manejo da fauna na Terra Indígena. Muitos animais, como o tracajá (shenpiri), quase desapareceram da região durante a década de 1980.

Em 1993, numa reunião comunitária, os Ashaninka discutiram o manejo do tracajá e decidiram proibir a coleta de ovos e o consumo da carne do animal durante um período de três anos. A população de tracajás, que estava em extinção no rio Amônia, aumentou novamente. Por meio do Projeto de Manejo para Reprodução de Quelônios, realizado em parceria com o Ibama e a ONG SOS Amazônia, desde 2003 os Ashaninka promovem uma festa todos os anos, com a presença de autoridades do mundo dos brancos, no dia da soltura de centenas de quelônios para repovoamento nos rios da TI do Amônea.

Os índios também proibiram o uso do veneno waakashi (timbó) nas pescarias realizadas no rio Amônia e nos principais igarapés para preservar os peixes. Como a pesca, a caça também foi alvo de importantes iniciativas destinadas a repovoar a floresta com os animais tradicionalmente caçados pelos Ashaninka. Desde 1992, as lideranças da Apiwtxa afirmam proceder a uma rotatividade das áreas de caça e estabeleceram zonas de refúgio para os animais.

Assim, ao longo dos últimos quinze anos, a Apiwtxa obteve financiamentos de diversas fontes e iniciou parcerias que possibilitaram a implementação de alternativas econômicas respeitosas ao meio ambiente. Os Ashaninka do rio Amônia não só adotaram o “rumo da sustentabilidade”, como são considerados hoje um exemplo muito bem sucedido da nova orientação política do desenvolvimento amazônico, buscando conciliar a preservação da natureza com alternativas econômicas viáveis para a comunidade. Não por acaso, o índio ashaninka Francisco da Silva Pianko em 2001 era secretário do Meio Ambiente do município de Marechal Taumaturgo, cargo hoje ocupado por seu irmão Benki Pianko. Francisco, desde 2003, ocupa o cargo de Secretário do Estado dos Povos Indígenas do Acre.

Invasão madeireira

Após a longa luta, nos anos 1980, contra a exploração madeireira mecanizada em suas terras, os Ashaninka do rio Amônia passaram a enfrentar novamente esse problema a partir do final de 2000, quando madeireiras peruanas começaram a invadir seu território ao longo da fronteira brasileiro-peruana. A despeito de lutarem de maneira incansável contra essa situação, até hoje as madeireiras continuam atuando.

Os Ashaninka estimam que cerca de 15% da Terra Indígena, ao longo do limite mais ocidental, tenha sido invadida nos últimos quatro anos por madeireiros peruanos, que abriram uma série de caminhos e varadouros dentro da área. Além da exploração ilegal de madeira, o Ibama também identificou pequenos acampamentos de peruanos ao longo da fronteira internacional e dentro dos limites da TI Kampa do Rio Amônia, onde parecem estar em operação laboratórios temporários de refino de pasta base de coca.

Depois de uma série de reivindicações indignadas dos Ashaninka, as autoridades começaram a se articular para tomar providências. Assim, desde 2001 existem discussões no plano governamental entre os dois países, no âmbito do Grupo de Trabalho Binacional sobre Cooperação Amazônica e desenvolvimento fronteiriço Brasil-Peru. Desde 2003, os governos do Acre e Ucayali, no âmbito da Secretaria Técnica para a Integração Acre-Ucayali, vêm discutindo a situação da fronteira do Alto-Juruá. ONGs indígenas, indigenistas e ambientalistas dos dois países também participam dessas discussões políticas e multiplicam iniciativas conjuntas no âmbito do projeto "Conservação Transfronteiriça da Região da Serra Divisor (Brasil-Peru)". De julho/2004 a julho/05, 22 acampamentos ilegais foram destruidos, 65 pessoas (62 peruanos e 3 brasileiros) foram presas e foram apreendidas e destruidas 6 mil m³ de madeiras nobres, além de couros de animais e jabutis.

Apesar da intervenção crescente das autoridades, a situação ainda não está controlada e os Ashaninka da Terra Indígena Kampa do rio Amônia continuam ameaçados. Ao longo dos últimos anos, a pressão crescente dos madeireiros peruanos vem, inclusive, estimulando conflitos entre os índios Amahuaka e famílias Ashaninka que vivem em comunidades do Alto Juruá peruano. Os Ashaninka explicaram que os conflitos acontecem porque as madeireiras que atuam na fronteira estão diminuindo o espaço territorial dos "índios arredios". As empresas madeireiras derrubam a floresta com maquinário pesado, que espanta a caça, e as armas de fogo dos trabalhadores empurram os índios que vivem “isolados” em direção às aldeias ashaninkas e kaxinawá espalhadas em ambos lados da fronteira brasileiro- peruana.

Nota sobre as fontes

Aldeia das Terras Altas, Igarapé do Breu. Foto: Arno Vogel, 1978.
Aldeia das Terras Altas, Igarapé do Breu. Foto: Arno Vogel, 1978.

As teses de doutorado de Elick (1969), Weiss (1969) e de Bodley (1970), assim como o livro de Varese (1968), constituem as referências antropológicas básicas sobre os Ashaninka. Esses antropólogos realizaram suas pesquisas em aldeias peruanas. Após um capítulo histórico e uma caracterização do meio-ambiente, Elick oferece ao leitor um estudo de vários aspectos da cultura indígena: atividades de subsistência, alimentação, cultura material, organização social e cosmologia. Esse tema da cosmologia foi o enfoque principal de Weiss, enquanto Bodley orientou mais seu estudo para as relações dos Ashaninka com as frentes de colonização e o meio-ambiente. Enfim, Varese focaliza sua análise sobre a história do povo. Além desses trabalhos clássicos, existem outros escritos apresentando de uma maneira geral a cultura ashaninka, como o de Graig (1967), ou analisando aspectos particulares dessa sociedade, como as atividades de subsistência (Denevan 1974).

Se os Ashaninka situados no Peru foram sujeitos a vários estudos, o conhecimento antropológico sobre o povo no Acre ainda é muito limitado. Excluindo alguns relatórios da Funai, a literatura etnográfica se resume a uma apresentação geral do povo realizada por Mendonça (1991) e a três dissertações de mestrado. Woodward (1991), Mendes (1991) e Ioris (1996). Woodward estudou os cantos e o xamanismo entre algumas famílias do rio Amônia e Breu. Mendes realizou uma etnografia pioneira com os Ashaninka do rio Amônia, focalizando sua atenção no ritual do piyarentsi. Ioris estudou o grupo do rio Envira em suas relações com a Funai e os índios isolados da região.

Minha tese de doutorado, concluída enm 2002, procura desvendar as construções peculiares que os Ashaninka do rio Amônia fazem de sua história e da política interétnica, mostrando como esse povo indígena viveu, degeriu e reinterpretou o contato com a sociedade branca em função das contingências históricas e de sua própria especificidade cultural. O trabalho revela como os Ashaninka do rio Amônia se apropriam de maneira original e criativa de vários elementos do mundo e do discurso ocidental para afirmar sua diferença étnica frente aos outros e suas reivindicações políticas.

Contato direto

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VÍDEOS

Ver também

Especial Sebastião Salgado na Amazônia - Ashaninka