De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Eliana Motta

Ingarikó

Autodenominação
Kapon
Onde estão Quantos são
RR 1728 (Coping, 2020)
Guiana 4000 (, 1990)
Venezuela 728 (, 1992)
Família linguística
Karib
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Os Ingarikó se definem como Kapon, assim como os Akawaio e os Patamona, que vivem na Guiana. Habitam uma região serrana belíssima, adjacente ao monte Roraima, que é também limite setentrional do Brasil. Ainda que mantenham antigas práticas xamânicas e se considerem descendentes dos irmãos mitológicos Makunaimë e Siikë, são adeptos da religião indígena Areruya, que cultua divindades cristãs.

Nome

Os Ingarikó se autodenominam Kakpon (Kapon, na grafia aportuguesada). O termo significa “povo do/no céu” ou “povo das/nas alturas”. É utilizado como autodesignação também pelos povos atualmente identificados como Akawaio e Patamona. Os Patamona habitam as savanas dos vales dos rios Potaro, Siparuni e Maú (chamado Ireng na Guiana). Mais ao Norte, os Akawaio se concentram no alto Mazaruni, na cordilheira Pacaraima, habitando também os baixos cursos do Mazaruni e do Potaro, a Leste, e em aldeias mistas do médio Kamarang (onde coabitam com famílias pemon), das cabeceiras do Cuyuni e de seu tributário, o rio Wenamu. Já os Ingarikó habitam o vale do alto Cotingo, região serrana a Noroeste dos Patamona e ao Sul dos Akawaio do alto Mazaruni.

Os Kapon são alguns dos povos de língua karib que habitam a circunvizinhança do monte Roraima. Os demais, embora lhes sejam semelhantes em muitos aspectos, se autodenominam Pemon. Se “kapon” e “pemon” são termos que significam “gente”, “pessoa” ou “ser humano”, uma das diferenças mais evidentes entre os grupos indígenas que vivem no entorno do monte Roraima e adjacências é o modo como eles designam a humanidade da qual fazem parte. Distribuem-se de tal maneira que não é raro uma região de aldeias kapon se avizinhar de uma outra, pemon. Os dois povos se relacionam com frequência, participando de uma mesma rede de trocas e de acusações de ataques, que repercutem antigos conflitos bélicos. Também não são raros os casamentos entre Kapon e Pemon. Sua mitologia e seus costumes se confundem, de modo que é possível falar em um único sistema sociocultural kapon e pemon.

As autodesignações presentemente assumidas pelos subgrupos kapon e pemon (Ingarikó, Akawaio, Patamona, Makuxi, Taurepan e Kamarakoto) eram, no passado, designações que uns atribuíam aos outros, mas nunca a si próprios. Outras denominações interétnicas, algumas delas mencionadas nas crônicas de antigos exploradores não indígenas, consistiam em: Waika/Guaika (nome que os Pemon atribuíam aos Kapon, seus vizinhos orientais); Eremagok/Arinagotos/Arenakotte (nome dos Kapon do rio Ireng, segundo os Kapon setentrionais, os Akawaio); Serekong/Seregong (referência de fontes holandesas aos Akawaio). Há também designações ecologicamente motivadas, que podem abranger mais de uma etnia: Teikok/Deikok (modo como os Pemon nomeiam os residentes das zonas de savana de seu território); Remonokok/Remonogok (referência dos Kapon e Pemon das serras aos moradores da planície do lavrado brasileiro); Ikenkok (designação dos habitantes da boca de um rio importante).

No passado, os Ingarikó identificavam as famílias kapon de sua região de acordo com os locais habitados: um rio, um igarapé, uma cachoeira ou uma serra. Hoje, esse sistema classificatório coexiste com a identificação por aldeia – Awentëi ponkon (gente da Awendei); Aknaren ponkon (gente da Serra do Sol). Há então os panarîkok (povo do rio Panari), sekkuwekok (povo do igarapé Sekkuwe), kuwatinkok (povo do rio Cotingo), kukuikok (povo do rio Kukui), entre outros. E os Ingarikó se veem como descendentes dos casamentos entre famílias kapon moradoras desses diferentes sítios do alto Cotingo e adjacências, onde vivem outras etnias kapon e pemon. Aliás, muitos contam de ancestrais de diferentes origens étnicas.

Quanto ao etnônimo Inkarîkok (Ingarikó, na forma aportuguesada), alguns de seus portadores dizem que significa “moradores da ponta da serra” e a palavra seria formada pela conjunção enka (ponta)+(marca de posse)+kok (morador). Outros o traduzem como “gente da mata fechada” ou “gente do lugar úmido”. Os Ingarikó confirmam a literatura, que diz que esse seria um modo de os Pemon das savanas designarem os Kapon das serras de floresta densa. Na verdade, os habitantes kapon do alto Cotingo apenas se autodenominam “Ingarikó” em assembleias e reuniões políticas, nas quais se discutem assuntos que concernem à sua relação com o Estado brasileiro. Em todas as outras ocasiões, usam “Kakpon” no tocante a si próprios ou a seu idioma. Tudo sugere que eles passaram a se apresentar externamente como “Inkarîkok”, mediante a intensificação de seu contato com os karaiwa (brasileiros), ao longo do século XX. Essa relação foi, afinal, historicamente mediada pelos vizinhos Makuxi, que habitam uma região de transição entre a savana e as serras. Assim, os Makuxi, mais numerosos e de aproximação mais intensa com não indígenas, teriam popularizado em Roraima seu modo (ecologicamente motivado) de designar os vizinhos kapon. Estes, por sua vez, teriam reconhecido, nas políticas totalizantes de Estado e na propensão karaiwa a encontrar uma unidade centralizada em povos onde ela não necessariamente existe, uma oportunidade para fortalecer sua autonomia em relação aos demais Kapon e Pemon.

Língua

“Os Ingarikó adotam uma única nomeação para etnia e língua respectivamente. Eles pertencem à família Karib e como parte do grupo Kapon se unem aos Akawaio e Patamona. Os falantes Ingarikó facilmente compreendem ainda as línguas Taurepan, Arekuna, Kamarakoto e o Makuxi, essa última, motivada pelo contato interétnico e pelo histórico de aprendizagem escolar. A língua Ingarikó é expressa em múltiplas linguagens seja na modalidade falada ou escrita. Ambas as modalidades estão presentes nos ambientes de convivência cultural, ritualística, religiosa, política e administrativa. Portanto, a língua é vívida, plenamente compartilhada entre crianças, jovens adultos e velhos no conjunto de suas comunidades e está em constante processo de mudança.

Como língua natural não é preciso impor normas visto sê-las inerentes ao repertório dos falantes. Entretanto, os indígenas como qualquer outra sociedade, demandaram pelo registro de sua língua, cujas informações foram organizadas em formato de gramática com fins acadêmicos e didáticos, por exemplo: na fonologia a composição básica ocorre com 7 vogais (a, e, ë, i, î, o, u), tendo algumas alongadas tîîse (mas), paasi (irmã) e 10 consoantes (p, t, k, ´(glotal), m, n, s, r, y, w) destacando a consonante glotal ´ que tem uma realização dinâmica ao flutuar com vogal: wa´ka~waaka (machado), contudo, sua representação assume a grafia de k e é possível encontrá-la duplicada kk, em sílabas distintas, como sekkerente (espécie de banana), assim como nn em tiwinnë (um só).

Com um inventário lexical elaborado, o campo das plantas e animais é muito produtivo, mostrando bases lexicais que se combinam e formam novos significados: urana (paca) e urana yek (abóbora, espécie), waikin (veado), waikinimî (onça, espécie de predador do veado), arauta (guariba), arautaimî (coqueluche), arauta akkuwî yek (pé de pimenta, espécie). Assim, através de classificadores lexicais, as diferentes espécies (animais e plantas) se conectam pela cor, forma, textura e têm contribuído para as ciências que adotam novas terminologias, por exemplo, na botânica o nome pakira (caititu) é incorporado como Pachira aquatica (monguba, “árvore da fortuna") para designar essa espécie. De forma ampla, os novos termos indígenas entram na literatura internacional como coadjuvantes ao latim, que sempre foi referência para classificação de espécies. Ademais, o contato com outros falantes, indígenas ou não, tem motivado a adoção e criação de palavras kaware (cavalo) merîsîmî ~merisimî (medicina), kuwaiyapa (goiaba), aroisa (arroz), pîraite (friday, sexta-feira), entre outras.

É uma língua com morfologia simples, mas de semântica sofisticada, tendo prefixos e sufixos compartilhados entre nome ukamatu (meu fogo) e verbo upakai (eu acordei). Merecem destaque os prefixos e sufixos verbais que junto com o comportamento de verbos formam dois sistemas e fazem do Ingarikó uma língua misturada (Mix language). É frequente que uma estrutura verbal tenha uma cláusula sintática correspondente: ikonekakpîiya (ele fez a porta), Saripuk uya mîrata konekakpî (Sales fez a porta). Sintaticamente o Ingarikó, ao ser uma língua misturada, opera com o Sistema Ergativo-Absolutivo, de maior produtividade, urë uya kuwata wënëkpî (eu matei o macaco) e com o Sistema Nominativo-Acusativo, menos produtivo, conforme o exemplo nîwënëi (eu matei ele, o macaco).

Recentemente, com o domínio da escrita na língua materna, o texto tem avançado no registro de narrativas (mitológica, lúdica, religiosa, cultural) dantes restritas às práticas orais. Assim os atuais domínios dos Ingarikó passam pela escolarização de sua língua com uma experiência de escrita profícua, mas sujeita a mudanças, cuja realidade é impulsionada pelos indígenas que se tornaram professores em suas comunidades. A concorrência do Português com o Ingarikó tem impactado no processo aprendizagem uma vez que o material didático usado na escola ainda está na língua majoritária. Isso implica num exercício contínuo dos professores por traduzir e explicar o conteúdo em Português-Ingarikó-Português. Não obstante, o cenário os leva ao aprimoramento do bilinguismo.”

[Maria Odileiz Sousa Cruz, Linguista (UFRR) ]

População e Território

A região Wîi Tîpî

Serra da região ingarikó Wîi Tîpî. Foto: Virgínia Amaral, 2015.
Serra da região ingarikó Wîi Tîpî. Foto: Virgínia Amaral, 2015.

A região ocupada pelos Ingarikó é designada por eles Wîi Tîpî (Serra do Sol), em referência à imponente serra homônima, em cuja base vive a comunidade de Aknaren (Também designada “Serra do Sol”), que, durante muito tempo, foi a mais populosa das aldeias ingarikó e funcionou como seu centro político e econômico. Atualmente, ela divide esse papel com Manalai. O território Wîi Tîpî, que está na porção setentrional da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TI RSS), é delimitado, ao norte, pelos montes Roraima e Caburaí, que integram a cordilheira Pacaraima, a oeste, pela fronteira entre Brasil e Venezuela acima do rio Quinô, a leste pelo rio Wairan (Uailán) e, ao sul, por uma área acima do rio Quinô e das aldeias makuxi Maloquinha, Caju, Pedra Preta e Caracanã. Atualmente, os Ingarikó estão distribuídos em doze aldeias: 1) Aknaren (Serra do Sol); 2) Kumaipak (Kumaipá); 3) Paramanak (Paraná); 4) Área Única; 5) Pamak (Mucajaí); 6) Marasuwepai; 7) Manairai (Manalai); 8) Awentëi (Awendei); 9) Sawîk Paru (Sauparu); 10) Mura Meru (Pipi do Manalai); 11) Karumanpaktëi; 12) Mapa yek (Mapaé).

Tepuis vistos da Manalai. Foto: Virgínia Amaral, 2015.
Tepuis vistos da Manalai. Foto: Virgínia Amaral, 2015.

Com exceção de Marasuwepai, que até 2019 era considerada um núcleo satélite de Área Única, todas as aldeias ingarikó são dotadas de posto de saúde com radiofonia, pista de pouso operante (exceto Mapaé e Awendei), escola municipal e/ou estadual (salvo Pamak e Mura Meru). Os Ingarikó dividem-nas em três núcleos sub-regionais, que são também políticos. As aldeias de números 1 a 6 são associadas a Aknaren (Serra do Sol), que é a maior do conjunto. Todas as cinco estão em zonas mista de serra e savana. Em comparação com o restante da população ingarikó, seus habitantes se engajaram mais na cultura regional de criação de gado, intensificada entre os povos indígenas das serras roraimenses a partir da década de 1970. As aldeias de números 7 a 10 integram o núcleo representado pela Manalai, que, hoje, é a mais populosa da região ingarikó; e a única de seu conjunto localizada na mata fechada. Awendei, que está a jusante no Cotingo, situa-se em uma zona de transição entre floresta e savana. As aldeias 9 e 10, Sauparu e Mura Meru, estão na savana. Karumanpaktëi e Mapaé, que formam o terceiro núcleo político-regional do território Wîi Tîpî, também se encontram em zona de mata fechada correspondente à área do Parque Nacional Monte Roraima, que está, portanto, sobreposto a essa extremidade setentrional da TI RSS.

População

O Censo Populacional de 2019 do Distrito Sanitário Especial Indígena Leste de Roraima (DSEI Leste-RR) informa que 1.402 pessoas habitam a região Wîi Tîpî. O censo do ano anterior calcula uma população de 1.430 pessoas, das quais 1.301 seriam Ingarikó, 129 Makuxi e 3 de outras etnias indígenas. Já os censos de 2019 e 2020, sistematizados pelo Coping, calculam totais populacionais de, respectivamente, 1.686 e 1.728 pessoas. O quadro abaixo informa a população de cada aldeia ingarikó conforme os três últimos cálculos:

Nome kapon da aldeia
(identificação brasileira)
População Censo Coping 2020 População Censo Coping 2019 População Censo DSEI Leste-RR 2019
1 Aknaren (Serra do Sol) 386 418 388
2 Kumaipak (Kumaipá) 222 212 161
3 Paramanak (Paraná) 67 49 61
4 (Área Única) 101 94 70
5 Pamak (Mucajaí) 62 53 30
6 Marasuwepai (Marasué) * * 33
7 Manairai (Manalai) 464 455 294
8 Awentëi (Awendei) 106 101 79
9 Sawîk Paru (Sauparu) 31 42 29
10 Mura Meru (Pipi do Manalai) 51 25 44
11 Karumanpaktëi (Mapaé) 144 151 122
12 Mapa yek (Baixo Mapaé) 94 86 91

Total 1.728 1.686 1.402

* O Coping considerou que os habitantes de Marasuwepai integram a população de Área Única


O quadro seguinte revela a variação da população ingarikó nas últimas décadas, conforme registrado em diferentes censos demográficos:

Ano População Ingarikó Censo Fonte
1992 614 CIDR Abreu 1995
2000 800 Cruz 2005
2007 1.170 Coping Mlynarz 2008
2015 1.408 DSEI Leste-RR _
2016 1.429 DSEI Leste-RR _
2018 1.430 DSEI Leste-RR
  
2019 1.686 Coping Amaral 2019
1.402 DSEI Leste-RR
2020 1.728 Coping _

O Censo Demográfico de 2018 do DSEI Leste-RR informa que, além dos 1.301 habitantes da região Wîi Tîpî, constituíam a totalidade da população ingarikó 134 pessoas que viviam em comunidades indígenas de alhures, com predominância de outras etnias. Afora os ingarikó que migraram para diferentes cidades em Roraima e outros que vivem na Venezuela e na Guiana.

Terra Indígena Raposa Serra do Sol

A TI RSS, de 1.747.464 hectares, está localizada no extremo norte do estado de Roraima e do Brasil. É habitada pelos povos Ingarikó, Patamona, Makuxi, Taurepan, Wapixana e Waiwai em 224 comunidades. O Censo de 2019 do DSEI Leste–RR estima que sua população seja de 26.048 indivíduos. Seu processo de homologação, iniciado em 1977 pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), foi concluído apenas em 2005 e assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O antropólogo Paulo Santilli (2001), responsável pelo laudo para a demarcação da TI, conta que, desde 1917, havia uma proposta do governo do Amazonas para demarcá-la com uma extensão quase correspondente à homologada. O que acelerou o processo demarcatório foi o boom garimpeiro em sua região serrana e os decorrentes problemas de saúde e violência. A população makuxi afetada, que já vinha se organizando, desde a década de 1970, contra a invasão de suas terras por fazendeiros, passou a se mobilizar pela saída dos garimpeiros e a necessária homologação de um território indígena contínuo, compreendido entre as regiões da aldeia makuxi Raposa e a ingarikó Serra do Sol. Nesse processo de organização política, tiveram papel fundamental a ordem católica Consolata e o Conselho Indígena de Roraima (CIR), fundado entre 1987 e 1988, e cuja principal base política seria a aldeia makuxi Maturuca.

Durante os anos de demarcação e homologação da TI, a FUNAI se encarregou de sua desocupação e da indenização dos invasores, em sua maioria fazendeiros e garimpeiros. Entretanto, alguns trechos situados na parte sul do território haviam sido vendidos a plantadores de arroz, que se recusaram a abandoná-los, apesar do reconhecimento da TI em 1993 por Grupos de Trabalho Interministeriais. Em 2008, os ocupantes, através do governo de Roraima, levaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) um pedido de anulação da homologação do território contínuo, que culminou na interrupção da operação policial de despejo. Os atos violentos dos invasores contra as populações nativas e representantes de órgãos governamentais, que desencadearam reações de instituições públicas e setores da sociedade civil, contribuíram para que a revisão judicial de 2008 fosse amplamente divulgada na mídia nacional. Conquanto o julgamento do STF, em 2019, ter sido favorável aos indígenas, mantendo a homologação da TI RSS, a decisão foi condicionada a dezenove salvaguardas, que podem ser estendidas a pleitos que envolvam qualquer TI no Brasil, e dão margem a interpretações que ferem os direitos indígenas garantidos pela Constituição de 1988.

Até os anos 1980, os Ingarikó almejavam a demarcação de seu território pelo Governo Federal com independência da área ocupada pelos vizinhos Makuxi, com quem mantinham uma rivalidade que repercutia antigos conflitos. A partir da década de 1990, eles optaram pela aliança com os Makuxi, que reivindicavam a demarcação e a homologação de um território indígena contínuo entre as regiões das aldeias Raposa e Serra do Sol. Com a homologação da TI RSS e a garantia de seus direitos territoriais, os Ingarikó passaram a se mobilizar para que os vizinhos e as instituições governamentais reconhecessem as especificidades do território Wîi Tîpî; e para que as políticas públicas os contemplassem diretamente, sem a mediação do povo vizinho. Em 2003, após um longo processo de construção interacional e discursivo entre as aldeias, eles oficializaram a criação do Conselho do Povo Indígena Ingarikó (Coping) e passaram a articular políticas exclusivamente destinadas à sua região.

O Parque Nacional Monte Roraima

Em Julho de 1989, uma Portaria da FUNAI reconheceu a proposta de demarcação da Área Indígena Ingarikó elaborada por um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI). No mês anterior, o Governo Federal havia decretado a criação do Parque Nacional Monte Roraima. Os Ingarikó alegam que não foram devidamente consultados em nenhum dos dois processos. Em 2000, quando foram convidados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) para participar da Oficina de Elaboração do Plano de Manejo da PARNA Monte Roraima, mal compreendiam o propósito de uma Unidade de Conservação e o papel do órgão ambiental em sua administração. O documento em questão foi elaborado antes da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2005, cujo decreto refere-se à condição de dupla afetação da área do PARNA, que passaria a exigir políticas de proteção à biodiversidade articuladas à garantia dos direitos indígenas no território em questão. Entre 2005 e 2008, formou-se um GTI para a construção de um Plano de Administração conjunta da área duplamente afetada, o qual foi composto por membros do Coping, do CIR e também representantes de instituições governamentais como a FUNAI, o IBAMA e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que, criado em 2007, assumiu o gerenciamento das Unidades de Conservação federais. O GTI elaborou o Plano Paata Eseru, que registra os anseios dos Ingarikó por compartilhar com o ICMBio a gestão do PARNA, garantindo a remuneração das comunidades engajadas na proteção do território e de sua biodiversidade como também o fortalecimento das práticas culturais indígenas inerentes à conservação da natureza.

Conforme previsto no Plano Paata Eseru, criou-se, em 2012, o Conselho Consultivo Pikatënninan, composto por lideranças Ingarikó e membros do Coping, Instituto Socioambiental, ICMBio, IBAMA, FUNAI, entre outras instituições públicas. O Conselho, que chegou a realizar uma Assembleia em 2013, ficou inativo durante seis anos. Somente em agosto de 2019, os recursos do Programa Áreas Protegidas da Amazônia permitiram que o ICMBio organizasse uma segunda Assembleia, na qual foram reafirmadas as diretrizes do Plano Paata Eseru e a necessidade de consolidação de um Plano de Gestão Territorial e Ambiental da região Wîi Tîpî. Ratificou-se também a convergência de interesses do Coping e do ICMBio em realizar atividades de turismo e expedições científicas para o monitoramento da biodiversidade da área do PARNA, com o reconhecimento da necessidade de tais empreendimentos valorizarem o conhecimento ecológico indígena e estimularem a formação de jovens pesquisadores ingarikó. Em novembro de 2019, o ICMBio promoveu uma expedição científica pioneira entre a comunidade Karumanpaktëi e o platô da Serra do Sol, que envolveu mais de vinte pesquisadores não indígenas e uma grande equipe de apoio ingarikó, além de ter viabilizado atividades preliminares de pesquisa intercultural.

A presença dos Kapon no alto Cotingo

Registros bibliográficos

Em um estudo relativo aos possíveis impactos de um complexo hidrelétrico sobre os Akawaio do alto Mazaruni, a antropóloga britânica Audrey Butt Colson (2009), argumentando que a presença deles na região circum-Roraima precedia a chegada europeia nas Guianas, fez um excelente levantamento das evidências arqueológicas e das menções bibliográficas aos Kapon. Ela revela que há notas escritas sobre os Akawaio desde os relatos de Lawrence Keymis (1904), que em 1596 acompanhou a expedição do explorador Walter Ralegh às Guianas. Além disso, há no mapa de Pierre Du Val de 1654 uma referência à “montanha de cristais”, isto é, o monte Roraima, em cuja circunvizinhança estão situados os Akawaio e outros Karib.

Referências bibliográficas aos Kapon do Cotingo apareceriam depois, mais exatamente, na crônica do naturalista alemão Appun (1871 II) sobre sua expedição ao monte Roraima, realizada entre 1863 e 1864, quando ele esteve em aldeias do alto Cotingo, que considerou como sendo akawaio. Uma delas chamava-se Copa. E, em 1878, a expedição de McTurk e Boddam-Whetam (1879) esteve em duas aldeias do alto Cotingo: uma, próxima à Serra do Sol, chamava-se Menaparuti e tinha como liderança Sam, um sujeito que dizia conhecer Georgetown. A outra, a montante, chamava-se Nimapi. Em 1906, C.W. Anderson, comissário britânico para a demarcação da fronteira entre Brasil e Guiana Inglesa, conheceu John William, que era líder da aldeia Pamak, localizada no alto Cotingo e existente até hoje. Ele detinha um documento de 1903, redigido pelo Diretor de Índios do Rio Branco, Luis Gomes de Quadros, que o reconhecia como chefe dos povos que viviam na região de sua aldeia Pama: os Sericon (Serekon), Macou (Makuxi), Serecuna (Arekuna), Incaco (Ingarikó) e Pixano (Wapixana) (C.W. Anderson 1907 apud Butt Colson 2009).

No fim do século XIX, o explorador Everard Im Thurn (1883) mencionou os Engarico, que ele definiu imprecisamente como uma população híbrida de Makuxi e Arekuna. Foi somente em 1911 que Koch-Grünberg (1982 I) fez o primeiro registro escrito de que se tem notícia com evidências de que os Kapon do alto Cotingo eram chamados Ingarikó pelos vizinhos Pemon. Mais do que isso: nas proximidades do rio Kukenan, o etnólogo esteve em uma maloca ingarikó, cujo chefe deu-lhe um forte aperto de mão, dizendo em inglês corrompido “Tenki! Tenki!” (Thank you! Thank you!) – cumprimento ainda mantido por alguns Ingarikó, especialmente os mais velhos. Em 1917, o jesuíta Cary-Elwes, em uma de suas viagens evangelizadoras, passou pela aldeia Karumangpatoi, próxima à divisa entre Venezuela e Brasil e ao Norte da Serra do Sol, onde batizou cento e oito crianças que ele entendeu serem Akawaio. Trata-se da aldeia ingarikó Karumanpaktëi, ainda existente. É possível que, em 1927, o grupo do Tenente Teles Facó, da comissão do general Rondon, tenha visto aldeias ingarikó no alto Cotingo, pois em seu trajeto entre o rio Maú (Ireng) e o monte Roraima ele passou pela região da Serra do Sol. Contudo, ele menciona ter encontrado apenas povos arekuna e makuxi (Rondon 1927). Já o Capitão Brás Dias de Aguiar (1940), coordenador da divisão da Comissão Brasileira Demarcadora de Limites que definiria as fronteiras brasileiras com Venezuela e Guiana Inglesa, conta que, entre 1930 e 1932, a região entre o monte Roraima e a nascente do Maú era habitada pelos povos Jaricuna (Arekuna), Igaricó (Ingarikó) e Patamona. E Jovita (s/d), responsável pelo “Roteiro Etnográfico” dessa expedição, sustenta que seus integrantes encontraram Ingarikó que viviam, à época, no alto Maú, onde grupos patamona residem hoje. Vê-se, por essa narrativa, que a designação “Ingarikó” podia ser estendida ao conjunto dos Kapon e não apenas aos habitantes do alto Cotingo. Jovita também reproduz um mapa, que sinaliza a existência de três aldeias no alto Cotingo, entre elas, Karumanpaktëi, que já havia sido reconhecida como um agrupamento kapon pelo jesuíta Cary-Elwes, em 1917. Entretanto, a autora diz tratar-se de uma maloca arekuna; e considera os Ingarikó imprecisamente como “um grupo originado pelo cruzamento ocorrido entre indivíduos das tribos Jaricuna e Makuxi”.

Finalmente, há registros de visitas que os Ingarikó receberam antes da década de 1990, quando Abreu (2004) e Cruz (2005) realizaram as primeiras pesquisas intensivas entre eles. Esse foi o caso das viagens de desobriga dos padres Dom Alcuino Meyer, em 1930, e Bindo Meldolesi, durante a década de 1950 (CIDR 1989). Em 1946, o naturalista Nunes Pereira (1980) esteve na região da Serra do Sol e, embora nada tenha escrito sobre sua visita, fez notáveis registros fotográficos mostrando que, naquela época, os Ingarikó dançavam Areruya e também o parisara, um baile que já não celebram mais. Por fim, uma reportagem de 1978 noticiou a passagem do antropólogo Célio Horst e de um grupo de sertanistas da FUNAI por uma série de malocas ingarikó, cuja população total somava trezentos e quatorze indivíduos.

Os Ingarikó e a colonização

Alguns Ingarikó idosos falam sobre antepassados que chegaram ao alto Cotingo – lugar considerado de difícil acesso em comparação com outros habitados pelos Kapon e Pemon – fugidos de guerras com os vizinhos indígenas. Esse foi o caso do finado Sarik Puk (Sales), fundador da comunidade Manalai, no rio Panari. Seus filhos contam que, quando criança, ele foi levado à região pela irmã mais velha, escapando de ataques de inimigos indígenas. Os dois viviam na Guiana, em local próximo ao atual território dos Patamona. É difícil saber se o povo do alto Cotingo é constituído por um conjunto de famílias que migraram de outras regiões, expulsas pelos avanços colonialistas, tal como relatam famílias Makuxi, que se deslocaram do lavrado roraimense para as serras na direção Norte. Não há narrativas orais ou escritas que o comprovem. De todo modo, fugitivas ou não, as famílias que ali permaneceram não parecem ter sentido os efeitos nefastos da invasão tanto quanto os vizinhos.

As aldeias ingarikó jamais sediaram missões cristãs como aquelas erguidas, já no início do século XX, entre os Makuxi do lavrado e os Taurepan e Arekuna da Gran Sabana e, em meados do século XX, entre os Akawaio e Patamona – presenças missionárias que se multiplicaram nos dias atuais. É certo que, entre as décadas de 1970 e 1980, um missionário da Missão Evangélica da Amazônia instalou-se na aldeia Kumaipá, onde fundou uma escola e começou a traduzir a Bíblia para o Kapon, apesar de a maioria das lideranças ingarikó da religião Areruya terem reservas para com o conhecimento bíblico do cristianismo não indígenas. O missionário permaneceu em Kumaipá por apenas dois anos. E alguns Ingarikó informam que decidiram expulsá-lo em função de sua inutilidade para o povo. As aldeias ingarikó também não foram tão impactadas pelas ondas de garimpo que afetaram, nos anos 1920 e mais intensamente a partir de 1959, os Akawaio do alto Mazaruni e, em 1990, os Patamona dos rios Potaro e Ireng, além dos Makuxi das serras. Durante a última onda de invasão garimpeira da região da atual TI RSS, os locais de operação de balsa e apoio ao garimpo, fixados nas aldeias makuxi Caju e Água Fria, eram os mais próximos ao território ingarikó, do qual distavam um ou dois dias de caminhada. Inclusive, os Ingarikó contam com orgulho que, quando garimpeiros quiseram se aproximar demais deles, instalando-se nas imediações da aldeia makuxi Pedra Preta, eles ajudaram a população local a expulsar os invasores. E se o garimpo da região serrana não causou tantos problemas aos Ingarikó (evidentemente em comparação com os vizinhos), eles sentiram ainda menos os efeitos da ofensiva de arrozeiros contra os Makuxi do sul da TI RSS no início dos anos 2000. Por fim, à diferença do que ocorreu, em meados do século XX, nos territórios dos Pemon da Gran Sabana e dos Akawaio do alto Mazaruni, não há instituições governamentais instaladas na região Wîi Tîpî. Até mesmo as relações colaborativas dos Ingarikó com o Estado e instituições brasileiras, mantidas sem interrupção desde a década de 1970, foram, por muito tempo, mediadas pelos Makuxi das serras. Em suma, é possível dizer que os empreendimentos colonialistas mais recentes atingiram os Ingarikó de forma indireta, isto é, através de sua relação com os povos limítrofes mais impactados.

Organização sociopolítica

Construção do malocão da Manalai. Foto: Virgínia Amaral, 2015.
Construção do malocão da Manalai. Foto: Virgínia Amaral, 2015.

No passado, a distribuição espacial dos Ingarikó era diferente da contemporânea. A família extensa vivia em uma única grande maloca redonda, com cobertura de palha em formato cônico. E poderia povoar exclusivamente um rio ou igarapé ou dividi-lo com famílias extensas habitantes de locais próximos. As famílias não permaneciam muito tempo em uma mesma casa, mudando-se conforme a necessidade de abrir roças em áreas mais distantes. Algumas famílias permaneciam, a maior parte do ano, em uma casa próxima às suas roças e mantinham outra, maior, onde faziam festas e celebravam Areruya, sua religião.

Atualmente, cada núcleo familiar, geralmente composto por um casal e seus filhos solteiros, habita uma casa que se avizinha daquelas de pessoas da mesma família extensa. Esse conjunto de casas forma uma espécie de bairro que pode estar próximo ou distante do centro aldeão, sempre constituído pela infraestrutura de uso comum: posto de saúde, escola, igreja e malocão de reuniões políticas.

Construção do malocão da Manalai. Foto: Virgínia Amaral, 2015.
Construção do malocão da Manalai. Foto: Virgínia Amaral, 2015.

A maioria das famílias constrói suas casas no estilo arquitetônico ancestral: chão de terra batida, paredes de pau-a-pique arredondadas ou ovais com cobertura de palha, que estão sendo paulatinamente substituídas por telhas de amianto. Os Ingarikó que optaram por usá-las alegam a dificuldade de encontrar folha suficiente para cobrir uma casa inteira.

Assim como os demais povos indígenas das Guianas, os Ingarikó observam as regras de descendência cognática bilateral e a uxorilocalidade. E seus termos de consanguinidade e afinidade (estes relativos a sogros/sogras, genros/noras e cunhados/cunhadas virtuais) sugerem uma endogamia ideal: o casamento com primos-cruzados bilaterais. De modo particular, os Ingarikó não concebem que o casamento adequado se dá entre primos cruzados bilaterais, pois, estes não são designados por termos distintos dos que designam primos paralelos bilaterais – com exceção do vocativo maknon, que os homens atribuem às suas primas cruzadas mais novas. De qualquer maneira, é possível dizer que uma pessoa casa-se preferencialmente com o filho ou a filha dos afins de seus pais, ou melhor, daquelas pessoas que eles designam “cunhado” ou “cunhada”.

A uxorilocalidade, predominante ainda hoje, fazia com que, antes das mudanças no padrão residencial, influenciadas pelas igrejas da religião Areruya e intensificadas pelas instituições e infraestruturas não indígenas, a formação das aldeias ingarikó correspondesse ao tipo ideal guianense traçado pelo antropólogo Peter Rivière (2001): um líder-sogro, sua esposa, suas filhas, seus genros, seus netos e, se possível, seus filhos homens com seus respectivos núcleos familiares. No passado, a pequena aldeia seria chefiada por esse líder-sogro, exitoso em manter os genros perto de si. Os Ingarikó, afinal, assemelham-se aos demais povos guianenses por legitimarem a autoridade que os homens exercem sobre os maridos de suas filhas.

Hoje, o antigo sistema político, baseado em relações de parentesco, coexiste com outro, constituído pelas figuras do tuxaua e do vice-tuxaua, eleitos por cada comunidade para planejar suas atividades coletivas e mediar sua relação com estrangeiros e outras comunidades. Elege-se também alguém, intitulado “capataz”, cuja função será a de coordenar a execução das atividades planejadas. Esse sistema foi assumido primeiramente pelos povos indígenas do lavrado roraimense, que tiveram contato mais intenso com a sociedade não indígena. E os Ingarikó adotaram-no, entre as décadas de 1970 e 1980, quando passaram a participar de reuniões embrionárias do movimento indígena de Roraima. Os tuxauas de todas as aldeias ingarikó constituem um conselho, que integra uma das instâncias deliberativas do Coping, junto com seu corpo administrativo – composto por Presidente, Tesoureiro e Secretário – e a Assembleia Geral, anualmente realizada, cujas pautas e propostas são democraticamente discutidas e votadas. Além dos idosos, os integrantes do Coping, tuxauas e capatazes, são atores políticos influentes os homens e as mulheres ingarikó que assumem cargos assalariados nas instituições governamentais de saúde e educação escolar de suas próprias comunidades e, menos frequentemente, alhures.

Atividades econômicas

Atividades por gênero e geração

A agricultura é a atividade econômica que mais ocupa os Ingarikó e exige comprometimento diário, com exceção dos sábados, que são dias de descanso prescrito pela religião Areruya. Na abertura de roças, os homens se encarregam de derrubar e queimar as árvores maiores, embora eles auxiliem as mulheres e as crianças a capinar e coivarar, assim como no plantio e na colheita da lavoura. Meninas ainda ajudam as mães, as irmãs casadas ou as cunhadas no preparo de bebida fermentada à base de mandioca ou de beiju, como também cuidando de seus bebês. As mulheres se ocupam da tecelagem de tipoias, feitas de linha de crochê industrial, e de redes feitas de lã de algodão que elas mesmas plantam, ainda que pouquíssimas mantenham essa técnica ancestral. Os homens, por sua vez, têm a prerrogativa de trançar cestos com fibra de arumã, construir a estrutura de madeira das casas e confeccionar canoas, bancos e mesas. Em muitas dessas atividades, eles dispõem da cooperação de meninos, que têm, consequentemente, a chance de aprender tais ofícios. Até a adolescência, eles costumam se dedicar, cotidianamente, à caça de aves com estilingues fabricados por seus pais. Todos, de qualquer idade ou gênero, participam de expedições para cortar lenha, folhas de palmeira, fibras de arumã, cipó titica e materiais diversos usados na confecção de artefatos e casas; batem timbó na pescaria coletiva; ajudam a embarrear as paredes de uma casa; fazem coleta de frutos silvestres e cogumelos comestíveis; durante a estação chuvosa, entre maio e agosto, pegam para comer as rãs anpak, saúva, e tipos alimentícios de lagartas, cupins e outros insetos; na maior parte do ano, com exceção de agosto e setembro, dedicam-se à pesca com anzol. Essa tarefa é, aliás, uma das preferidas das crianças, que, frequentemente, navegam sozinhas com as canoas de seus pais.

Jovem da Manalai com sua queixada. Em outubro de 2016, uma vara de queixadas passou pela Manalai e fez a alegria de várias famílias locais. Foto: Virgínia Amaral, 2016.
Jovem da Manalai com sua queixada. Em outubro de 2016, uma vara de queixadas passou pela Manalai e fez a alegria de várias famílias locais. Foto: Virgínia Amaral, 2016.

A atividade masculina da caça não é tão regular como a agricultura e nem mesmo a pesca. Alguns homens Ingarikó dizem ter mais facilidade para caçar durante wîi piya (setembro a novembro), uma vez que nesse período os animais são atraídos pelo amadurecimento de diversos frutos silvestres. De qualquer maneira, há mamíferos e aves que aparecem preferencialmente em outras épocas. Mas o fato de ser possível caçar em diferentes períodos não facilita a vida dos caçadores, já que é cada vez maior a escassez de animais silvestres comestíveis na região Wîi Tîpî. Sair à procura de caça exige, portanto, maior disposição do que antigamente ou resignação a um resultado frustrante.

O fascínio pela carne de queixada. Em outubro de 2016, uma vara de queixadas passou pela Manalai e fez a alegria de várias famílias locais. Foto: Virgínia Amaral, 2016.
O fascínio pela carne de queixada. Em outubro de 2016, uma vara de queixadas passou pela Manalai e fez a alegria de várias famílias locais. Foto: Virgínia Amaral, 2016.

A contrapartida feminina da caça é a cozinha, com ênfase no preparo semanal de eki (beiju) e do kaasiri (caxiri), ambos feitos à base de mandioca brava. O caxiri é a principal bebida consumida pelos Ingarikó e seu nome pode abranger outras, que são fermentadas e potencialmente embriagantes: sikaru eku e kaiwara eku (também designadas “garapa”, são deliciosos sumos fermentados de, respectivamente, cana e abacaxi); parakari (equivalente ao pajuaru dos Makuxi); paiwaru; paiwa. As duas últimas, parecidas com o parakari, são raramente consumidas e pouquíssimas mulheres sabem fazê-las. Na verdade, essas são as principais bebidas fermentadas, entre muitas outras, que os Ingarikó e demais Kapon e Pemon consomem.

A economia política das aldeias ingarikó é também movida por maiyu (mutirões), isto é, pela reciprocidade manifesta mediante a participação no mutirão promovido por outrem (abrir roças, embarrear uma casa e plantar maniva são os mais comuns). Eles tendem a ser animados e seguidos de confraternizações promovidas pelos anfitriões, que oferecem aos convidados comida e bebida fermentada em abundância.

A riqueza das roças

Entre os Ingarikó, um núcleo familiar típico (cônjuges e filhos) tem em média três roças abertas, uma de aproximadamente um hectare e duas um pouco menores. Os cônjuges recém-casados vivem e trabalham com os pais da moça durante um tempo (um ano ou mais), até abrirem sua primeira roça, sob os auspícios do sogro que avalia sua capacidade de autonomia. Os Ingarikó abrem dois tipos no ano: a maior, entre janeiro e março, no início de toronkan, a seca; a outra em wîi piya, um período de chuvas leves e intermitentes, compreendido entre setembro e novembro. Na primeira, aberta na mata virgem, plantam variedades bravas de maniva e outras espécies (pimentas diversas, batata doce, milho, inhame, abacaxi, banana, entre muitas). O plantio é feito a partir do momento da derrubada até as chuvas de abril, precedentes às fortes precipitações de tîmon, a estação chuvosa, que se estende de maio a agosto. Abril, também chamado katarok, é o período de piracema e das animadas pescarias coletivas com timbó. Na segunda roça anual, aberta na capoeira, planta-se apenas manivas, das bravas.

Em 2017, o Projeto Ekurauyama do Coping viabilizou a publicação de dois mapas da agrobiodiversidade da região Wîi Tîpî, um relativo às aldeias Manalai e Awendei, o outro, às aldeias Serra do Sol, Sauparu e Área Única. A riqueza das roças ingarikó pode ser dimensionada pelos resultados qualitativos e quantitativos obtidos: no primeiro caso, foram levantadas 35 espécies e 147 variedades plantadas, das quais 49 são de maniva. Em relação às outras três aldeias, levantou-se 39 espécies e 262 variedades de cultígenos, das quais 122 são de maniva.

Ancestralidade mitológica

À diferença de diversos subgrupos kapon e pemon, os Ingarikó não se consideram descendentes do herói mitológico Makunaimë (Makunaima, na forma aportuguesada), mas de Siikë, seu irmão caçula. Siikë (Tunga penetrans), o bicho-de-pé, é tido como mais astuto e engenhoso que o primogênito. A ele os Ingarikó atribuem a formação de elementos da paisagem da circunvizinhança do monte Roraima, de aspectos etológicos e fisiológicos de diferentes espécies animais e a invenção ou a apropriação de importantes elementos culturais. Certos grupos makuxi designam os irmãos mitológicos como Insikiran e Anike. Os Ingarikó contam que esses são nomes conferidos a Siikë em mitos onde ele atua como, respectivamente, transformador de outros seres e curador. Vale também ressaltar que, à maneira de alguns dos Pemon, para quem Makunaima é o nome de um grupo de irmãos, os Ingarikó às vezes tratam ambos os irmãos como Makunaimë amëk (os Makunaima). Assim, mesmo na mitologia de um povo como o Ingarikó, que tem Siikë como principal demiurgo, Makunaimë é o termo englobante da relação.

O episódio mítico, abaixo reproduzido, conta como os irmãos introduziram a agricultura à humanidade, após derrubarem Wayaka, a árvore de todos os frutos. Ele foi registrado por não indígenas que conviveram com diversos grupos kapon e pemon e em diferentes épocas. Em algumas versões, a derrubada de Wayaka é seguida de um dilúvio, que origina a morte da humanidade terrena. Uma versão arekuna ainda tematiza a conquista humana do fogo, ou seja, da culinária e da cultura. O episódio aborda, então, temas filosóficos fundamentais e, por isso, deve ser tão lembrado por diferentes Kapon e Pemon. A versão ingarikó seguinte, de 2017, foi narrada na língua Kapon por João Sales, considerado o melhor contador de estórias da aldeia Manalai. Ela foi traduzida para o português pelo professor Samuel Camilo Williams.

Eles eram ruins. Makunaimë e Siikë, seu irmão mais novo. Sua mãe se chamava Ime. Viviam perto de Paraitîpî, na Venezuela. Estavam sempre com fome. Com muita fome. Acamparam perto do igarapé Makna, onde havia os peixes yokkîre (Lebiasina aff. yuruaniensis ). Todas as noites, a paca saía para comer e voltava para o acampamento. E o restante das pessoas continuava com fome. Durante o dia, ela dormia. Não tinha fome. Desconfiados, os irmãos decidiram que alguém deveria persegui-la. E mandaram o veado campeiro. De volta, ele lhes contou: “A paca está aproveitando as frutas que achou logo ali. Ali tem muita comida que caiu no chão! Muita banana! Muita mesmo! Estão maduras! Vamos ver!”. Encontraram, debaixo da árvore Wayaka, grande quantidade de frutos caídos. Comeram o que havia caído no chão e decidiram: “Vamos derrubar o pé de Wayaka!”. Siikë disse a Makunaimë: “Derrube-a, irmão! Derrube-a!”. E com um machado de pedra, Makunaimë tentou derrubá-la. Mas ela era muito grande. Seu tronco, duro. E o machado entortou. “Derrube-a, você!” – disse Makunaimë ao irmão mais novo. E Siikë começou a golpeá-la com o machado: “Sakao! Sakao! Sakao! Sakao! O tronco está mole. Parece o de uma bananeira!” E continuou com as machadadas: “Sakao! Sakao!”. Até que derrubou a árvore enorme. “Tuuururuuuuu heiiin! Tuuuruurruu!” (barulho dela caindo). Durante a queda, o povo da Guiana gritou: “Aaaahhh!”. O povo de Aruimî. O povo da Venezuela também gritou. Já nós, do Brasil, não escutamos sua queda. Estamos longe, atrás do Roraima, escondidos nas serras. Por isso somos pobres. Se tivéssemos escutado o barulho de Wayaka, teríamos bananal, canavial, mamoeiros, o que fosse. Mas tudo isso ficou no lado de lá. Em Paruimë, na Venezuela, tem uma mata com muita banana. Aqui não. É ruim. É pobre. Siikë achou que eles deveriam juntar os frutos e guardar as sementes e os tubérculos para plantar. Foi assim que ele nos deixou as plantas cultivadas.

Assim que derrubaram Wayaka, o mundo escureceu. Dentro de seu tronco, havia um buraco com água e traíras. Decidiram cobri-lo com um cesto e avisaram: “Não mexam no buraco das traíras! Dele pode vir o dilúvio!”. Mas o macaco-aranha destampou o buraco. A água saiu do tronco e o mundo escureceu. Os irmãos dormiam. Siikë disse a Makunaimë: “Chegou o momento de amanhecer. Vou imitar o uru-corcovado: Tore! Tore! Tore!”. E Makunaimë viu que começou a amanhecer: “Já está amanhecendo! Já está amanhecendo!”. Então Siikë disse: “Vou cantar como o aracuã-pequeno quando estiver claro”. E cantou: “karakuwa, karakuwa, karakuwa, karakuwa”. E Makunaimë viu que estava claro: “Já amanheceu!”. Assim foi a estória de Makunaimë. Assim foi a estória de Siikë.

Ontologia e Cosmologia xamânica

A noção de pessoa Kapon

Os Ingarikó consideram todo ente terrestre como constituído de pun (carne), o invólucro material de seu corpo, que é animado por akuwarî, uma luz vital contida, que também pode ser compreendida como “espírito”. São atributos de akuwarî os movimentos (inclusive a respiração de asitun, o ar/vento), o pensamento, os sentimentos e a fala. Na morte, essa luz vital perde, justamente, o aspecto luminoso, tornando-se akuwarîkpî, uma sombra. Akuwa tem o sentido de “luz” ou “claridade”. O termo, acrescido do sufixo de posse , indica que akuwa pode ser possuída ou estar contida em alguma materialidade. Hoje, os Ingarikó dizem que akuwa vem do paraíso, a partir de Jesus ou de Deus. Todavia, há crônicas e registros antropológicos entre Kapon e Pemon de épocas passadas, que informam sua concepção sobre a origem solar da luz vital.

A vitalidade associada à luminosidade não é necessariamente positiva, pois mesmo seres que os Ingarikó consideram nefastos são dotados de akuwarî (a exemplo de assassinos e do próprio Diabo). No entanto, têm superioridade hígida, moral, intelectual e estética aqueles cuja luz contida for mais intensa. Os Ingarikó entendem que são manifestações de akuwarî os traços da personalidade de uma pessoa, que podem diferenciá-la de seus pares. Akuwa é pura luz; já akuwarî se manifesta sempre como imagem ou duplo antropomórfico de um ser. Manifesta-se assim, porém, em sonhos ou em ritos.

Todo ser é dotado de akuwarî, inclusive, animais, vegetais e minerais. E todo akuwarî, além de antropomórfico, tem intencionalidade e hábitos semelhantes aos dos humanos: casa-se, faz festa, cozinha, caça. Isso significa que, no plano espiritual, os hábitos culturais são universalmente compartilhados. E o que vai distinguir a humanidade dos Kapon da humanidade virtual (ou espiritual) dos demais seres é a maneira como eles constroem seus corpos coletivamente, formando uma comunidade que consideram ser consubstancial.

A construção de corpos consubstanciais é um processo constante, justamente, porque eles e sua humanidade específica sempre podem ser instabilizados pelas relações de alteridade. A exemplo dos casos de sequestro espiritual que resultam no adoecimento ou na morte do invólucro corporal da pessoa cujo espírito foi sequestrado pelo de outro ser (frequentemente, o de um animal). Isso significa que a humanidade, conceituada no termo autodesignativo “kapon”, é uma condição que resulta da manutenção coletiva de certas práticas, isto é, de determinados corpos. Muitas são as práticas e as qualidades que reiteram a humanidade kapon: a generosidade, a disposição para o trabalho, o domínio do idioma kapon, o convívio cotidiano e próximo, a comensalidade e a natureza do que se come, o consumo de bebidas fermentadas, sobretudo o caxiri. Os Ingarikó não concebem, portanto, sua humanidade como dada, mas como condição a ser conquistada, da qual até mesmo um não indígena pode se aproximar (embora nunca completamente). Um brasileiro, por exemplo, pode ser considerado kakpon pe (tal como Kapon) caso domine a etiqueta por eles valorizada, compartilhe sua ética ou adquira alguns de seus hábitos, como beber caxiri e comer de sua comida. Por outro lado, um Ingarikó pode ter sua humanidade kapon questionada caso resolva viver longe da família ou adquira hábitos que confrontem a ética de seus pares.

Cosmologia xamânica

O universo de atuação do piyasan, o pajé ingarikó, é composto pelos seguintes patamares, que estão sobrepostos: kak (o céu), o superior; non (a terra), o intermediário; e o mundo subterrâneo. Em contraste com o patamar terrestre, os outros dois não parecem ter muita relevância xamânica.

Em non (a terra), estão os dois destinos privilegiados das viagens espirituais do piyasan, ambos lugares de escuridão: wîk tau/yau (o interior da serra) e tuna kau (o fundo d’água). No segundo deles, vivem os tuwenkaron e os rato, que costumam manifestar-se corporalmente como cobras, embora seus espíritos tenham a aparência humana. A eles são atribuídas as mortes por afogamento. Dizem os Ingarikó que o espírito rato, um homem ou uma mulher de pele bem clara, leva o espírito da pessoa para namorar em sua casa, no fundo do rio. Se ela se familiarizar com os anfitriões, ou seja, se aceitar qualquer comida e casar-se com um deles, seu corpo morrerá e seus parentes nunca mais a verão. Eventualmente, o piyasan resgata alguns desses espíritos levados, evitando que seus invólucros corporais adoecidos pereçam definitivamente.

O interior das serras é habitado por seres de duas categorias: os mawari (ou imawari) e os poitokma. Mawari é cada um dos espíritos antropomorfos, femininos ou masculinos, de diversos seres (vegetais, animais, minerais etc.), com quem o piyasan lida quando, no rito, seu próprio espírito transforma-se à semelhança deles. Os mawari são ambivalentes: podem tanto atacar os humanos, sequestrando seu espírito, quanto ajudá-los mediante a colaboração com o piyasan nas negociações com o sequestrador. Os poitokma também são espíritos antropomorfos, femininos ou masculinos. Diferem dos mawari em dois aspectos importantes: também podem sequestrar espíritos alheios e, assim, adoecer ou mesmo matar pessoas, mas não atuam como auxiliares dos piyasan na cura daquelas que tiveram o espírito sequestrado; são mães ou pais, donas ou donos, dos animais comestíveis (inclusive os insetos). Manifestam-se, materialmente, como pedras (wok tëpu), que os piyasan e os caçadores guardam e lavam quando querem pedir determinada quantidade de animais para o consumo humano.

Há também donas e donos de minerais e de espécies vegetais, a exemplo de Eki Noksoto, que administra a mandioca. Tais espíritos têm poder sobre a fertilidade, o crescimento e a disponibilidade dos seres a eles associados. Os Ingarikó dizem que o espírito de algumas pessoas falecidas se transformam em mawari ou, mais frequentemente, em poitokma, ainda que nenhum finado recente tenha tido esse destino.

Atualmente, os Ingarikó atribuem a maioria das mortes de seus parentes aos ataques dos matadores kanaimë. No passado, morria-se também de taren (feitiçaria), que, hoje, é vista como causa de doenças graves, porém, não letais. Os Ingarikó afirmam que os kanaimë pertencem sempre a outras etnias vizinhas, inexistindo, entre eles, quem domine suas técnicas de execução: memorização das enunciações de taren (capazes de, por exemplo, emudecer a vítima ou cachorros que eventualmente protegem sua casa); transformação em formas animais diversas, que disfarçam momentaneamente sua natureza humana; manipulação de ervas mágicas, chamadas muran, que são introduzidas nas entranhas das vítimas para que seu cadáver produza um suco doce e putrefato, posteriormente consumido pelos matadores; força e agilidade físicas extraordinárias, que os tornam eficazes na perseguição e agressão de seus alvos, os quais costumam estar sozinhos no momento dos ataques. Por tal razão, os Ingarikó jamais circulam desacompanhados, sobretudo à noite, quando também trancam as portas e janelas de suas casas.

Tais ataques são sempre fatais, portanto, irremediáveis. Taren, a medicina não indígena e nem o xamanismo podem anulá-los. Alguns casos particulares são atribuídos à intenção de vingança, embora os Kapon e Pemon tendam a explicar o fenômeno geral em função das necessidades vitais dos kanaimë: assim com um caçador precisa caçar suas presas, eles precisam caçar humanos para beber do líquido podre de suas vítimas. Além da vingança, há outra motivação política de ataques de kanaimë, cujas vítimas preferenciais são homens de prestígio, invejados, que acumulam aliados de troca, bens, mulheres, fartura alimentar e podem, consequentemente, ser generosos.

Uma minoria alega saber fórmulas mágicas de taren, ressaltando, entretanto, usá-las exclusivamente para fins benéficos; jamais para atacar alguém. A palavra taren significa “sopro” e diz respeito ao método de encantamento do taren esak (dono ou mestre de taren), que, enquanto profere ou pensa em uma fórmula mágica, sopra ou expira fortes e curtas rajadas de ar na direção desejada. Se seu objetivo é prejudicar alguém, o feiticeiro sopra na direção da vítima, que pode estar próxima ou fora de vista, até a quilômetros de distância. Ele pode soprar uma comida, que será entregue à vítima, ou um pouquinho de terra a ser despejado sobre ela. Para curar, o feiticeiro pode soprar o próprio corpo dolorido do enfermo ou a comida que ele ingerir – o que vai depender do problema em questão. Os Ingarikó dizem que, quando uma pessoa é “estragada” por taren, ela só pode ser salva por alguém que domina a fórmula específica para desfazer os efeitos do ataque.

A cura pelo piyasan

Quando a pessoa adoece em função de roubo espiritual e quer ser curada pelo piyasan, sua família deve providenciar um punhado de folhas de diferentes espécies vegetais, que, amarradas em dois maços, consistem em um dos principais materiais auxiliares da cura ritual. Os outros materiais são: um banco, onde o piyasan se senta; tabaco, que ele inala, bebe ou fuma; pedras e cristais associados aos espíritos com quem ele se comunica. À diferença dos Karib e outros povos vizinhos, os Kapon e Pemon não usam chocalho nas cerimônias xamânicas. Elas ocorrem à noite, jamais de dia, na casa do piyasan ou do paciente, que permanece deitado em sua rede. Seus parentes podem ficar. Mas é preciso que haja escuridão absoluta, além do ambiente silencioso.

O processo de cura ritual culmina, idealmente, na resolução da causa da enfermidade do paciente. Via de regra, a doença é associada ao roubo do espírito do enfermo e o diagnóstico é feito por um dos diversos espíritos auxiliares do piyasan, todos eles classificados como mawari. Assim que o problema é satisfatoriamente diagnosticado, o espírito do piyasan, ou algum de seus ajudantes, tenta encontrar o espírito sequestrado e devolvê-lo ao corpo enfermo. O resgate pode resultar de um diálogo diplomático com o espírito sequestrador ou de um conflito perigoso.

Nos depoimentos dos Ingarikó, o tabaco aparece como marca do xamanismo, o principal produto que ajuda o piyasan a receber seus auxiliares espirituais e ter seu próprio espírito liberado do corpo para viajar às serras e alhures. O tabaco é plantado em sua roça ou pode consistir em uma variedade selvagem. Suas folhas são ressecadas, trituradas e, depois, misturadas com um pouco de água. Durante as cerimônias, o piyasan inala esse suco. O tabaco também vira cigarro, cuja fumaça os espíritos mawari sopram no paciente, por meio do corpo do piyasan. São os primeiros que costumam diagnosticar e curar a doença. Cada mawari visitante é recebido com um canto, que costuma descrever sua ação e sua própria fala é reproduzida pela boca do piyasan.

Durante o rito, o espírito do piyasan transforma-se, ele próprio, em mawari – o que exige que seu corpo sue. Transformado em mawari, ele vê tudo claro, iluminado, pois o tabaco “troca seu olho” e lhe dá condições de enxergar mesmo na escuridão da noite e dos domínios espirituais que ele frequenta. Às vezes o piyasan acrescenta ao suco de tabaco cascas de certas árvores com propriedades alucinógenas. Evidentemente, esses complementos potencializam os efeitos visuais da transformação provocada pelo tabaco. Mas é este último, não os outros, que a cosmologia kapon e pemon considera como dispositivo que faculta a visão do mundo espiritual pelo piyasan.

Os pajés kapon e pemon fazem uso ritual de cristais, que materializam espíritos mawari e podem atraí-los, assim como as pedras de caça, que materializam os espíritos de donas ou donos de animais de caça e funcionam como centro de concentração e irradiação da força vital das espécies que controlam. Conta-se que, antigamente, um pajé podia atacar seu inimigo com o lançamento de um desses cristais (invisíveis ao olhar destreinado), que perfuraria o corpo da vítima. A pedra também poderia servir à cura quando esfregada na parte do corpo atacada pelo cristal alheio.

Finalmente, há apon (o banco) onde o piyasan se senta para dar início aos procedimentos rituais que conduzirão o descolamento e a viagem de seu espírito. Ele tem extrema importância na cosmologia kapon e pemon, não tanto por conta de sua função de artefato ritual, mas em razão do rendimento conceitual dessa mesma função. A mitologia de diferentes povos karib revela que os bancos xamânicos, por serem produzidos pelos próprios pajés e consistirem em materializações de suas capacidades, são concebidos como intrinsecamente associados a eles. Nesse sentido, são entendidos como seu lugar de referência no cosmos, podendo exercer uma atração sobre seu espírito. Metaforizando essa conexão entre o pajé e seu suporte ritual, os Ingarikó dizem que é “banco” tudo aquilo que dá suporte aos seres e aos objetos. Dizem, ainda, que tudo que existe tem seu “banco”, isto é, seu referencial espiritual no cosmos. Os Ingarikó também metaforizam como “banco” tudo aquilo que no mundo espiritual auxilia o deslocamento do espírito do piyasan. No domínio da religião Areruya, constituída por antigas traduções xamânicas do cristianismo, diz-se que Jesus Cristo virá à terra salvar a humanidade religiosa em cima de um banco, isto é, de um piso flutuante capaz de transportá-lo.

Religião Areruya

As cerimônias

Festa da religião Areruya na comunidade Manalai. Foto: Virgínia Amaral, 2016.
Festa da religião Areruya na comunidade Manalai. Foto: Virgínia Amaral, 2016.

Areruya é a religião compartilhada pelos Ingarikó e outras etnias dos povos Kapon e Pemon. Suas cerimônias são realizadas em grandes malocas denominadas soosi (corruptela do inglês “church”), ocorrendo nos finais de semana e em datas festivas, como o Natal e a virada do ano. Elas foram testemunhadas entre os Taurepan, em 1911, pelo etnólogo alemão Koch-Grünberg. E, de acordo com o jesuíta Cary-Elwes, em 1917, os Akawaio já lhes conferiam o estatuto de religião. Diferenciam-se mais evidentemente de outros ritos cristãos por serem constituídas por uma dança coletiva circular, que pode durar toda uma manhã de sábado ou atravessar a madrugada em ocasiões festivas. No fim, a corrente de dançarinos costuma avançar rumo à saída da igreja e recuar diversas vezes, até finalmente sair e girar algumas vezes em torno do pátio exterior à igreja. Quando param a dança, alguém já levou uma refeição de encerramento à mesa central do pátio ou disposta no interior da maloca. Canta-se, diante dela, um tema relativo à alimentação e alguma autoridade profere esekunkantok, uma oração coletiva cuja dinâmica é similar à das ladainhas de outros cultos cristãos. Cada participante se serve de beiju e damurida (caldo apimentado à base de tucupi), mas há sempre alguém, geralmente uma mulher, para distribuir o caxiri e lavar, imediatamente, as poucas cuias esvaziadas. Quando há carne, uma pessoa se encarrega de reparti-la igualitariamente. Em ocasiões festivas, mulheres preparam grande quantidade de caxiri e beiju. Alguns homens caçam, outros preparam sikaru eku ou kaiwarak eku – sumos alcoólicos de, respectivamente, cana e abacaxi fermentados. As famílias pescam e organizam-se para que haja carne de caça e peixe em abundância.

Toda refeição de encerramento de uma cerimônia de Areruya é precedida por uma reza, na qual os Ingarikó se comunicam com as divindades para garantir a disponibilidade permanente de alimentação abundante e de qualidade. Foto: Virgínia Amaral, 2016.
Toda refeição de encerramento de uma cerimônia de Areruya é precedida por uma reza, na qual os Ingarikó se comunicam com as divindades para garantir a disponibilidade permanente de alimentação abundante e de qualidade. Foto: Virgínia Amaral, 2016.

A prática de Areruya não se limita ao domínio cerimonial da igreja. Qualquer um pode entoar os cantos religiosos em situações cotidianas. Membros de núcleos familiares ingarikó costumam cantar juntos, cada qual em sua rede, antes de dormir e no amanhecer. Já em situações públicas, como em mutirões para a abertura de novas roças ou antes de refeições interfamiliares, cantos e rezas são preferencialmente conduzidos por mulheres e homens com maior autoridade: pessoas mais velhas ou mais versadas na religião. Em aldeias com igreja, há uma pessoa que é soosi epuru (liderança da igreja/ religiosa) e tem o auxílio de lideranças secundárias. Ela é incumbida de guiar a maior parte das cerimônias religiosas: puxar os cantos coletivamente entoados, ditar as coreografias que os acompanharão e, nos intervalos, fazer os sermões. As demais lideranças podem substituí-la em todas essas atividades, além de proferir a reza que precede a refeição final.

As cerimônias de Areruya são populares entre todas as faixas etárias. Qualquer pessoa, mesmo sendo bem jovem, pode ditar um ou mais cantos nas cerimônias ordinárias – o que, aliás, é incentivado pelas lideranças religiosas. Quanto às crianças, elas acompanham os pais e avós na igreja desde que são bebês de colo e, quando aprendem a andar, participam da dança.

Oficialização na Guiana e filiais

É um consenso, mesmo entre os Ingarikó e algumas etnias pemon, que a aldeia akawaio Amokokupai, situada na Guiana, é o centro da religião Areruya, onde viveram algumas das lideranças religiosas mais respeitadas. Com apoio de missionários anglicanos e católicos, os Akawaio conseguiram incorporar Areruya ao Guyana Council of Churches, em 1977. A oficialização implica, na prática, que batismos e casamentos, realizados por especialistas da igreja de Amokokupai, geram certificados que podem ser registrados no Guyana Post Office e ter efeitos civis, conforme a legislação daquele país. Em 1985, os líderes religiosos de Amokokupai sistematizaram um documento, The Constitution of the Alleluia Church, com o conjunto de doutrinas e regras cerimoniais de sua religião. Em função da burocratização e da oficialização nacional de Areruya, as lideranças religiosas akawaio reclamam a prerrogativa de oficiar casamentos, batismos e cerimônias de luto, inclusive, entre Kapon e Pemon de alhures, que, no entanto, não são contemplados pela legislação guianense. Para os Ingarikó, os certificados de Amokokupai não têm efeito prático, mas simbólico. E eles fazem questão de receber tais documentos.

Atualmente, há mais de vinte filiais da igreja de Areruya, espalhadas entre aldeias kapon e pemon no Brasil, na Guiana e na Venezuela. No Brasil, tramita no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Brasileiro um processo, iniciado pelo Conselho do Povo Indígena Ingarikó em 2012, para o reconhecimento de Areruya como patrimônio cultural nacional.

A origem de Areruya conforme a história não indígena

Relatos de cronistas sugerem que Areruya consiste em uma cristalização de movimentos proféticos kapon e pemon que ocorreram, majoritariamente, no século dezenove. Muitos deles foram liderados por pajés, que, a partir do convívio intermitente ou efêmero com missionários cristãos, sobretudo anglicanos, passaram a profetizar o advento de um cataclismo, associado à promessa de salvação indígena no paraíso cristão e, em alguns casos, à conquista das mercadorias dos colonizadores.

Atualmente, os Ingarikó e outros Kapon e Pemon negam qualquer influência missionária sobre a criação de Areruya. E essa compreensão tem respaldo em mitos de origem da religião que, embora registrem que ela surgiu a partir do encontro de seus profetas fundadores com religiosos não indígenas, retratam estes últimos como inimigos e colocam em dúvida a veracidade de seu conhecimento. Na narrativa dos Akawaio, mais historicizada, os brancos são missionários ingleses que não quiseram mostrar a seu aprendiz indígena o caminho do paraíso cristão; em outra, a dos Ingarikó, as palavras divinas são melhor compreendidas pelo profeta Pîraikoman do que por Noé, seu rival branco. Todas as versões enfatizam que os pioneiros indígenas receberam as palavras de Areruya diretamente de Deus, o qual eles contataram por si próprios. Algumas revelam que esse contato se deu através de viagens espirituais oníricas, um método de conhecimento tipicamente xamânico. A criação de Areruya através de práticas xamânicas é, portanto, um importante fator de explicação do não reconhecimento indígena de influência missionária sobre a religião.

A origem de Areruya conforme a história oral ingarikó

A narrativa seguinte reúne versões contadas por cinco Ingarikó: Marcos, o líder religioso da Serra do Sol; Dilson Ingaricó; Darcília Brasil; o finado Manoel Sales; Samuel Camilo Williams. Três delas foram narradas em Kapon e traduzidas pelo último.

Contam os Ingarikó que Areruya surgiu com Pîraikoman, no tempo de Noé, o criador da Bíblia. Pîraikoman era indígena, não se sabe de qual povo. Vivia dançando e cantando, mas era acompanhado apenas pela sogra e a irmã mais nova de sua esposa. Já Noé, que era branco, tinha dinheiro e muitos seguidores.

Como Pîraikoman era feio, com a pele cheia de feridas, sua mulher não lhe dava atenção e namorava Noé. O marido não se importava, só queria praticar Areruya e ir para a roça. Lá ele trocava de pele. Tirava a que tinha e transformava-se em um homem bonito, sem que ninguém o percebesse. Antes de voltar para casa, colocava novamente a pele com feridas. Um dia, a mulher foi embora com Noé. Eles não tinham roça e roubavam a de Pîraikoman, que deu origem a muitos alimentos que os Kapon conhecem hoje: mandioca, batata doce, abóbora etc. Ele não se incomodava. Sabia que um dia subiria ao paraíso. E foi assim: um dia ele subiu, levando consigo a sogra e a cunhada. Os seguidores de Noé correram para arrancar todos os alimentos de Pîraikoman, mas quando chegaram à sua roça, só encontraram a pele feia que havia ficado pra trás. As feridas eram seus antigos pecados. Ele havia trocado de pele e subiu sem morrer, tornou-se imortal. O lugar havia virado floresta e todas suas plantas subiram com ele.

Pîraikoman encontrou Deus e, lá de cima, fez chover muito, provocando o dilúvio. Deus orientou Noé a construir um barco onde ele colocaria todos os animais. E assim ele fez. Noé, a ex-mulher de Pîraikoman e os animais ficaram dias trancados no barco, esperando a água baixar lentamente. Depois que a água baixou, eles encalharam. Não morreram. Mas também não subiram, à maneira de Pîraikoman. Seu barco está por aí, encalhado.

Dizem que Pîraikoman sentia a palavra de Deus dentro de si. Não era necessário que Deus lhe dissesse o que fazer. Ele apenas agia e Deus o aprovava. Noé já precisava da orientação divina. Tinha medo de errar, medo de tudo, então ouvia Deus antes de agir. Em contraste com Pîraikoman, ele não tinha expressão própria. Então fez riscos dizendo que aquelas eram palavras divinas. Foi assim que surgiu a escrita. E também a diferença entre as religiões: as bíblicas e Areruya.

Cosmologia religiosa: escatologia e abundância na vida terrestre

O universo tratado nos cantos, nas rezas e nos discursos dos líderes religiosos de Areruya é composto de dois patamares predominantes: worî, a terra, e epîn (do inglês heaven), o paraíso. A terra é habitada por humanos, animais, plantas, pedras e seus respectivos donos ou mestres espirituais. Worî é considerada um lugar ruim em função das mortes, as doenças, o envelhecimento, a fome e as brigas a que os seres humanos estão sujeitos. Epîn, em contraste, é um mundo ideal. Lá estão Paapai (Deus), seu filho Sisosikîrai ou Siseskîrai (Jesus Cristo), Maria, a mãe de Jesus, e os inserî (anjos) – pessoas que viveram exemplarmente na terra, sob a ética de Areruya, e foram para o paraíso sem passar pela prova de morte. Também habitam epîn os espíritos de pessoas que seguiram os preceitos de Areruya em vida, mas que não foram tão exemplares a ponto de evitarem a morte de seu corpo. Isso significa que apenas os espíritos de seguidores de Areruya têm epîn como possível destino post mortem.

Grande parte dos Ingarikó, inclusive líderes religiosos, entende que epîn situa-se no céu empíreo, acima do patamar celestial onde estão os astros. A luminosidade de epîn não é, pois, relativa ao sol. Ela é mais intensa que a luz solar e permanente, jamais dá lugar à escuridão. Alguns preferem duvidar de sua admissão em epîn e imaginam que, após a morte, seu espírito permanecerá em Surusiran (Jerusalém), que é o primeiro destino dos espíritos de todos os mortos. Lá eles vivem por algum tempo, aguardando a sentença divina que lhes dará, ou não, acesso a epîn. Ewaron (a escuridão), que está na própria terra, é a morada de Makoi, o Diabo. Para lá irão aqueles que, em vida, não seguirem os preceitos religiosos e tornarem-se eles próprios makoi (ruins ou pecadores), passando a matar, brigar ou roubar.

Toda a informação cosmológica e os princípios éticos de Areruya são transmitidos através de cantos, tidos como palavras divinas, que os pukkenak (profetas ou sábios da religião) escutam em sonhos. Aliás, os Kapon e Pemon diferenciam os pukkenak dos líderes de Areruya comuns, em função da capacidade de trazer novos cantos de suas viagens espirituais oníricas. E muitos consideram que o atual líder religioso da Serra do Sol é o único pukkenak vivo, devido à sua competência singular de renovar o hinário de Areruya – não obstante ele mesmo não se reconheça como tal.

Os cantos, em seu conjunto, dizem basicamente que, em contraste com a perfeição divina celestial, a humanidade terrena se encontra em condição de maldade e privação, que deve ser superada através da prática de Areruya. Os religiosos procuram diferenciar-se de si mesmos, construindo corpos e espíritos semelhantes aos celestiais. Os Ingarikó dizem, então, que Areruya é um caminho (asanta ou ekma). Um caminho evidentemente metafórico, que, no entanto, viabiliza o acesso ao caminho literal de epîn, o paraíso. A ética, os preceitos e os sentidos das práticas da religião permitem a seus adeptos percorrerem-no espiritualmente, após a morte, em sonhos e, mais raramente, no próprio contexto cerimonial.

A dança ritual é percebida como via de purificação das pessoas, que “arranca” delas o mal ou o Diabo. E as bebidas fermentadas embriagantes têm importância nesse processo. Os Ingarikó atribuem a transformação corporal também à animação que elas provocam. Associadas à dança e aos cantos, elas conduzem os participantes a um estado de leveza, que é fundamental à sua capacidade de metamorfose – mesmo que, via de regra, ela não seja instantânea e consista em uma diferenciação corporal diferida. Ela é colocada em curso em cada cerimônia, que é constituída pelos mesmos processos transformacionais que as pessoas perseguem ao longo de sua vida: ekoneka (organizar-se ou preparar-se); ëpîrema (rezar para si mesmo ou abençoar a si mesmo); emaimupa (palavrear-se ou dotar-se da palavra divina); esensima (trocar de pele ou transformar-se); emîsaka (levantar-se ou elevar-se ao paraíso). Mas há momentos rituais críticos, que viabilizam saltos transformacionais e podem, inclusive, resultar na mudança de estatuto social das pessoas envolvidas. Trata-se das lavagens corporais no igarapé de recém-nascidos, pais de recém-nascidos, enlutados, recém-casados, meninas que tiveram a menarca, homicidas e enfermos.

Os processos de fabricação corporal à imagem divina decorrem também de uma moral religiosa, transmitida nos sermões cerimoniais e observada cotidianamente. Alguns de seus princípios éticos são: epukkenak (“ter conhecimento” ou “tornar-se sábio”, isto é, adquirir o conhecimento divino); ëësiknînkenak (“gostar de estar com parentes”, “gostar de si mesmo”; “respeitar e valorizar as pessoas” – saber viver coletivamente com solidariedade, afeto e sem violência é o ideal de existência da religião e dos Ingarikó); ekkaisarë (“ter igualdade” ou “ser igual”). No âmbito religioso, ekkaisarë diz respeito à capacidade de todos igualarem seus hábitos e comportamentos, devendo aprender a linguagem de Deus e participar das cerimônias religiosas para se transformarem, juntos, à semelhança das divindades. É, portanto, coletiva a divinização ideal que se busca através de Areruya, ainda que a maioria dos Ingarikó não se veja digna de subir ao paraíso sem passar pela prova de morte, posto que a anulação de sua maldade inerente exigiria uma vida ascética que eles não levam.

Um dos fenômenos que os adeptos de Areruya conjuram, através da atividade ritual e da ética cotidiana, é parau (o dilúvio ou o cataclismo). Isso não significa que é possível evitá-lo. Conjurar o cataclismo significa apenas adiá-lo ou evitar suas manifestações enfraquecidas, como as fortes tempestades. Nem os mais religiosos sabem quando será o cataclismo final, mas dizem que Jesus Cristo já comunicou aos antigos pukkenak sobre seu advento prévio. O mundo vai escurecer e a humanidade que quiser se salvar, estará dançando e cantando Areruya. Jesus apenas salvará os religiosos, que, juntos, subirão em seu “banco de luz” (uma sorte de transporte espiritual) e alcançarão o paraíso sem passar pela prova de morte. Em seguida, uma água incandescente virá do céu para queimar toda a matéria terrestre, inclusive a humanidade pecadora. Os espíritos ruins estarão fadados à escuridão, onde vive o Diabo. Já aqueles que se dedicaram a Areruya, sem atingirem o estatuto de pukkenak, terão a chance de salvar seu espírito no paraíso ou, pelo menos, em surusiran (o purgatório).

À diferença dos profetismos kapon e pemon do passado, os Ingarikó de hoje relativizam o advento do cataclismo. Porém, eles mantiveram outro aspecto dos antigas críticas proféticas, a saber, a valorização da abundância alimentar no presente, que, de certa forma, resulta na valorização da própria vida terrena. Por viabilizar o acesso espiritual ao paraíso e também a alimentação, o conjunto de práticas e conceitos de Areruya é considerado pîrata, um “dinheiro”, que é metafórico e distinto do dinheiro não indígena. Este último é associado ao Diabo, pois, embora útil, é limitado e só pode servir a alguns.

Os Ingarikó dizem que Deus criou a terra e todas as categorias vegetais e animais, cujos espíritos ele pode manejar em favor da alimentação humana. Nas rezas esekunkantok, que precedem as refeições de encerramento das cerimônias de Areruya, os religiosos sempre se comunicam com as divindades celestiais a fim de que elas continuem provendo-os de alimento bom e saudável. Quando a humanidade profere as rezas, cujas palavras são consideradas divinas, ela busca evidenciar a Deus que sabe falar sua língua e que, portanto, está em vias de se transformar à sua imagem. Perpetuando essa comunicação, ela garante a si mesma a provisão divina de alimentos de boa qualidade e em quantidade suficiente.

Os Ingarikó atribuem seus sucessos econômicos também à interlocução com donas espirituais não cristãs, habitantes do patamar terrestre: Pîreri Paasi, a Irmã-Mandioca, e Eki Noksoto, a Avó das Manivas. Esta última, que tem a aparência espiritual de uma velha senhora Kapon, é capaz de interferir no crescimento e na disponibilidade das plantas. Embora o pajé seja seu interlocutor humano privilegiado, em algumas igrejas de Areruya, como a da Manalai, dedica-se cantos e rezas a ela. Já Pîreri Paasi, que se apresenta como uma jovem mulher, é contatada exclusivamente em contextos religiosos, sobretudo antes das refeições cerimoniais, quando lhe são dedicados cantos, que ela compensará com cultígenos diversos, bebidas fermentadas e alimentos à base de mandioca.

Há quem possa achar intrigante que uma mesma religião, voltada à transformação das pessoas para o iminente fim do mundo, esteja também voltada à melhoria das condições terrestres. Contudo, a cosmologia religiosa revela que tais ênfases são duas faces de um mesmo processo ideal de divinização.

Transformações: educação escolar, renda e projetos

“A primeira escola da região foi criada na Serra do Sol, em 1974, por um padre que partiu sem conseguir alfabetizar os alunos. Sucederam-no quatro professores evangélicos que, embora tivessem mais sucesso na alfabetização, não conseguiam permanecer por mais de um ano. Em 1977, a Secretaria de Educação do Território Federal de Roraima viabilizou a homologação da escola da Serra do Sol que, no entanto, foi fechada logo após o reconhecimento oficial e só voltaria a funcionar em 1981. Desde então, iniciou-se uma era de professores majoritariamente makuxi, que até os anos 90 dirigiam o ensino moldado na língua makuxi para explicar os conteúdos do material didático em português. Um novo cenário surgiu em 2003, quando seis alunos ingarikó concluíram o ensino fundamental e foram indicados para dar aulas. Outros ingressaram no Instituto Insikiran da Universidade Federal de Roraima. Hoje, já formados, lecionam em suas comunidades. Através do projeto Ação dos Saberes Indígenas, que foi promovido pelo Ministério da Educação a partir de 2015, passaram a produzir material didático na sua língua materna.

A maioria das crianças e dos adolescentes ingarikó frequenta uma das escolas de ensino bilíngue da região Wîi Tîpî, integradas à rede estadual ou ao município de Uiramutã. Conforme o Censo do Coping de 2020, as 11 escolas (7 estaduais e 4 municipais) recebem 591 estudantes e empregam 38 professores, dos quais 37 são Ingarikó. As famílias e lideranças costumam apoiar a educação escolar dos jovens sob a justificativa de que é preciso provê-los com os recursos a serem usados em sua relação com não indígenas, sobretudo, para que saibam como exigir do Estado brasileiro a garantia de seus direitos constitucionais. Entre 2015 e 2016, as escolas das comunidades Manalai e da Serra do Sol conquistaram, através da Secretaria de Educação de Roraima, a criação da Educação de Jovens Adultos, com o objetivo de dar continuidade à escolarização de jovens Ingarikó, que haviam finalizado o Ensino Fundamental, sem intenção de abandonar suas comunidades e completar os estudos alhures. Atualmente, depois de regularizar seu processo de escolarização conforme os padrões etários do sistema governamental, os Ingarikó têm reivindicado a implementação do Ensino Médio Regular nas duas escolas citadas

Além dos professores e dos que são terceirizados para trabalhar com a merenda e a manutenção dos espaços escolares, são assalariados cerca de 20 Ingarikó contratados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena do Governo Federal para prestar serviços de saúde na região Wîi Tîpî. Ademais, a maioria dos Ingarikó idosos recebe aposentadoria e muitas mulheres têm acesso ao Bolsa Família.

Inspirados na experiência com manejo de gado dos vizinhos Makuxi e, também em função da escassez de caça na região Wîi Tîpî, os Ingarikó fundaram, em 2014, o Nutrir, um centro comunitário de agroecologia, onde eles conciliam a criação de gado com o plantio de frutíferas e cultígenos diversos..

Desde 2015, o Coping vem executando projetos para a valorização da agrobiodiversidade e o planejamento do turismo como alternativa econômica na região Wîi Tîpî. Tais projetos já viabilizaram a realização de assembleias gerais; a aquisição de equipamentos de irrigação e construção de uma horta comunitária no Centro Nutrir; a publicação de dois mapas sobre a agrobiodiversidade de cinco comunidades; e duas consultorias que fizeram avançar o planejamento do turismo na região ingarikó, em conformidade com as diretrizes da Instrução Normativa da FUNAI, que regulamenta a atividade em Terras Indígenas”. (Maria Odileiz Sousa Cruz, e Virgínia Amaral)

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