Kuruaya
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- 283 283 (Siasi/Sesai, 2020)
- Família linguística
- Munduruku
Na história do contato com o colonizador, os Kuruaya sofreram uma desestruturação da vida em suas aldeias no rio Curuá, devido ao trabalho forçado nos seringais e castanhais. Nos séculos XVIII e XIX, foram conduzidos pelos jesuítas em descimentos forçados até a aldeia-missão Imperatriz ou Tauaquara, que veio a ser o embrião da cidade de Altamira. As conseqüências desse processo foram desastrosas e os Kuruaya chegaram a ser considerados extintos na década de 1960. Nos anos seguintes, tiveram sua indianidade questionada ou ignorada, mas a conquista de suas terras garantiu o reconhecimento de sua identidade étnica. Hoje vivem num movimento pendular entre a aldeia e a cidade, buscando assegurar seus direitos de cidadão indígena.
Nome
Os documentos disponíveis sobre os Kuruaya apresentam diferentes grafias e fazem referência a esse povo como Kuruaia, Caravare, Curuari, Curiveré, Curubare, Curuahé, Curuerai, Curuara, Curuaye, Curueye, Curiuaia, Curuaya (Cf. Nimuendajú (1948:221). Os mais velhos afirmam que o nome está relacionado ao rio Curuá, subafluente do rio Xingu, onde se estabeleceram depois de migrarem do rio Tapajós, após uma cisão com os Munduruku. '
Língua
Do tronco Tupi, a língua dos Kuruaya é da família Munduruku, segundo afirma o lingüista Aryon Rodrigues (1995). A aldeia é composta de uma população jovem que fala o português e conhece palavras soltas da língua materna. Até 2000, havia apenas um velho Kuruaya que falava fluentemente a língua na aldeia.
Em Altamira, oito velhos das etnias Kuruaya e Xipaia, que moram no local há 45 anos, falam a língua nativa. Recentemente, foi feito um estudo sobre a língua, mas ainda não teve início o processo de revitalização de seu uso entre os Kuruaya.
Localização e população
A Terra Indígena Kuruaya, na margem direita do rio Curuá, sub-afluente da bacia do Xingu, era constituída, em 2003, de uma aldeia e quatro agrupamentos familiares. A aldeia Cajueiro era composta de 115 pessoas e possuia 12 residências, posto indígena, escola, posto de saúde, casa de farinha, campo de futebol, depósito, cemitério, roçados familiares e comunitário e um local reservado à Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais - CPRM. Um Kuruaya era contratado para garantir a manutenção do equipamento e para fazer a leitura hidrográfica no nível do rio, a intensidade pluviométrica, além da coleta de outros dados.
Os Kuruaya que vivem em Altamira vivem junto com outros grupos étnicos também outrora missionados: Juruna, Kayapó, Arara, Xukuru, Karajá, Guarani, Guajajara, Xavante, Kanela e Xipaya. Muitos desses grupos mantém na cidade laços de parentesco desde a época das primeiras incursões colonizadoras. Particularmente, as histórias dos Kuruaya e dos Xipaya se mesclam em Altamira, havendo uma profusão de inter-casamentos.
Os indígenas em Altamira podem ser encontrados em vários bairros, como Aparecida (18 famílias: 13,04%), Boa Esperança (15 famílias: 10,87%), Independente II (14 famílias: 10,14%), Brasília (10 famílias: 7,25%), Açaizal (8 famílias: 5,80%), São Sebastião (7 famílias: 5,07%), Recreio, Jardim Industrial, Independente I e Centro (6 famílias cada um: 4,35%). A grande maioria deles surgiu no começo do século 21 e tem pouca infraestrutura [dados de 2003].
O levantamento do Grupo de Trabalho que realizou o estudo de Impacto Ambiental para a construção da hidrelétrica de Belo Monte solicitado pela ELETRONORTE em 2002, apresentou a seguinte distribuição das etnias na cidade:
- Xipaya: 44,20%
- Kuruaya: 36,23%
- Juruna: 7,97%
- Kayapó: 5,80%
- Arara: 1,45%
- Karajá: 1,45%
- Outros: 2,90%
É comum que os Kuruaya citadinos tenham relações com seus parentes na TI Kuruaya, mas geralmente são os aldeados que visitam os parentes na cidade. O tempo de deslocamento da aldeia Cajueiro até Altamira varia de acordo com a estação (seca ou chuvosa) e de acordo com o tipo de embarcação. No verão, uma voadeira de 40 HP leva seis dias no trajeto e no inverno quatro dias. Já um barco de 22 HP leva 17 dias no verão e no inverno dez dias.
Histórico do contato
As fontes históricas disponíveis sobre a região indicam que os Kuruaya sempre viveram ao longo dos rios Iriri e Curuá, afluente e subafluente pela margem esquerda da bacia do rio Xingu, respectivamente. A Terra do Meio é uma área de perambulação muito lembrada nos relatos dos mais velhos e, segundo esse povo, abrange a área do rio Jamanxim até o rio Xingu, sendo provável que chegue ao rio Tapajós, de onde o grupo que veio a ser os Kuruaya migrou, depois de uma cisão com os Munduruku.
Os Kuruaya foram mencionados nos escritos de padres, viajantes, cientistas e governantes do Pará desde o século XVII. A expedição de Gonçalves Paes de Araújo, presidente de província, em 1685 contou com a participação desses indígenas como ajudantes. Os documentos mencionam que eles falavam a língua geral e possuíam cerca de 20 aldeias na região dos baixos e médios Xingu.
Já o relatório do presidente da Província do Pará, Francisco Araújo Brusque (1863), fez um reconhecimento da situação precária dos índios, mencionando a região do Xingu e seus habitantes:
Prosseguindo no empenho de colligir seguas informações sobre as hordas selvagens dessas províncias, que escaparão ao quadro de minhas observações oferecendo a vossa censura na sessão do ano passado, consegui reunir novos, e mais amplos dados sobre os hindus que habitam as terras banhadas pelo rio Xingu, a partir de suas cachoeiras para cima...Trezes são as tribos selvagens que habitam aquellas paragens, quiçá as mais férteis e suas desta província: Juruna, Tucunapenas, Juaicipoias, Urupayas, Curiaias, Peopaias, Taua, Tapuiara, Tapuiaia, Eretê, Carajás, Mirim, Carajás, Pouis, Araras, Tapaiunas, para de destacar as etnias em questão: (...) Quanto aos Curuaias: é bastante extensa essa tribo. Tem a sede de sua residência no centro das matas, e a não pequena distância das margens do grande rio do lado ocidental. São mais bravos e destemidos de todos os outros de diversas Tribus. Apenas tem relação com os Tucunapenas, que as cultivam, entretanto com muitas reservas... Evitam aproximar-se do rio, e quando uma outra vez sucede saírem em suas praias, mostram-se aterrados e confusos."
No século XVIII e XIX, os Kuruaya foram arregimentados para o trabalho nos seringais, para a extração do caucho e da castanha e, posteriormente, quando estes produtos passaram a ter pouco valor no mercado, a extração de peles de animais passou a ser amplamente procurada, abrindo um novo tipo de economia local. Outra atividade exercida pelos Kuruaya foi a de batedores e iscas nas expedições de contato. Ou seja, ficavam a frente das expedições abrindo caminho ou atraindo os indígenas arredios.
As constantes migrações dos Kayapó rumo a foz do rio Xingu, a expansão pelo leste dos Munduruku e pelo oeste dos Carajá, somou-se à frente de expansão seringalista, que entrou pela foz do rio Amazonas e subiu o rio Xingu, percorrendo seus afluentes e tomando contato com as etnias que ali viviam.
Curt Nimuendajú, que realizou trabalho de campo nos rios Xingu, Iriri e Curuá de 1916 a 1919, informa que os Kuruaya faziam parte de um grande número de etnias que viviam no baixo e médio Xingu, junto com os Xipaia, os Juruna (Yudjá), os Arupaí (extintos), os Tucunyapé (extintos), os Arara e os Asuriní. O etnógrafo fez referência a um ataque empreendido pelos os Kuruaya, em 1883, aos seringueiros no rio Jamanchim. Também menciona que os Kuruaya sofreram ataques dos Kayapó e dos Munduruku em 1885. Por volta de 1896, eles habitavam a floresta na margem oeste do rio Curuá, segundo informações trazidas a Nimuendajú pelos Juruna e Tucunyapé. Também consideravam os tributários da margem direita do rio Curuá - Curuazinho, Bahú e Flechas - como seu território.
Ao longo desse processo histórico, os relatos descrevem uma migração pendular, marcada pelo movimento de ida e de vinda do rio Iriri e Curuá para as margens do Xingu com o igarapé Panelas, onde estava a aldeia-missão Tauaquara. Esta foi sendo incorporada pelo centro mercantil da cidade de Altamira, e no século XX foi se transformando no bairro São Sebastião.
No início do século XX, Emília Snethlage, chefe da seção de Zoologia do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), teve os Kuruaya como seus guias durante a expedição exploratória para encontrar a ligação entre o rio Xingu e o rio Tapajós. Por volta de 1913, a mesma pesquisadora voltou a campo e retomou o contato com seus informantes indígenas e seringueiros, atualizando as informações sobre os dois grupos. Nesse período, eles já estavam restritos ao igarapé das flechas, sob o comando do Xipaia Manoelzinho. Havia três malocas no lado oeste, com cerca de 150 habitantes.
Quando Snethlage reencontrou os Kuruaya, em 1918, o processo de contato estava avançado. Suas malocas no interior da floresta tinham portas e seu formato era retangular com um quarto no meio, onde o pajé se recolhia. Eles usavam utensílios domésticos produzidos e presenteados pelos seringueiros.
Nimuendajú mencionou que a aldeia no rio Iriri e Curuá foi atacada pelos Kayapó-Gorotire em 1918, mas foi apenas em 1934 que o local foi tomado, obrigando os Kuruaya a se espalharem: alguns seguiram para o Tapajós, outros se dispersaram ao longo do rio Iriri e outros tantos se juntaram com os poucos Xipaia que viviam perto do Gorgulho do Barbado. A estimativa do etnógrafo é de que, ao todo, tenham ficado na região cerca de 30 pessoas. A diáspora ajuda a compreender porque serão dados como extintos em pesquisa realizada na década de 1960.
Na década de 1950, os Kuruaya trabalhavam como empregados dos seringais. Já nos anos 1970-80, estavam espalhados ao longo do rio Curuá, na forma de pequenos núcleos familiares, em locais como Fazenda, Riozinho do Anfrísio (afluente do Iriri), Cajueiro Velho e Cachoeira de São Marcos. A retomada da organização social foi realizada pelo casal João Lima e Maria das Chagas Lopes Kuruaya no Cajueiro Velho. Tal fato foi possível quando o conhecimento de ouro aluvial atraiu tanto os indígenas quanto os garimpeiros. Num primeiro momento, o casal pôde tirar o seu sustento da porcentagem de ouro que de lá era extraído, o que permitiu a construção de uma infraestrutura mínima com Posto indígena. Num segundo momento, porém, as empresas mineradoras passaram a atuar e os Kuruaya começaram a sofrer violência física.
Nos anos 1980, os arquivos do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) mencionam as dificuldades enfrentadas pelos Kuruaya, entre os quais uma carta da instituição e do padre Ângelo Pansa reclamando a situação de pressão, agressão, invasão armada e risco de vida que estavam passando as famílias no rio Curuá, em razão da presença das empresas mineradoras: Espeng Minérios e Minerais LTDA, Brasinor Mineração e Comércio LTDA (garimpo Madalena). A Empresa mineradora Brasinor, citada no documento, dizia que possuíam na área infra-estrutura montada incluindo uma pista de pouso, portanto tinham certos direitos sobre o lugar. Outras empresas, como Andrade Gutiarrez S/A, Mineradora Palanqueta, Minerador Souther Anaconda e Madalena Golde Corporation, também passaram a atuar nos anos seguintes. Os Kuruaya lembram da década de 1980 como o período em que o rio Curuá ficou infestado de empresas mineradoras, que poluíam com mercúrio seus meios de vida.
Para reverter esse quadro, nesse período retomaram as condições para a posse de suas terras e se empenharam na reorganização social e territorial. As terras localizadas à margem direita do rio Curuá passaram pelo processo de regularização fundiária em 1985, quando a Funai instituiu Grupo de Trabalho para a identificação e levantamento ocupacional, com o objetivo de definir os limites ocupados pelos Kuruaya e Xipaia, na época vivendo juntos. Nessa época, a área identificada e delimitada tinha uma superfície de aproximadamente 13.000 hectares. Em 1988, a área foi interditada pela portaria PP 148 de 09/02/88, devido aos desentendimentos causados pela presença da firma Brasinor na área indígena, havendo necessidade de garantir a vida e o bem estar dos índios. Em 1991, o Parecer nº 067 e a portaria nº 550/92 favoreceram a identificação feita em 1985, privilegiando a correção dos limites. O motivo foi a utilização de cartas do RADAM da década de 1970, que eram pouco precisas. Em seguida, com base em cartas mais atualizas do IBGE e considerando a presença dos Xipaia, a superfície da terra foi ampliada para 19.450 hectares e perímetro aproximado de 95km.
Em 1993, os Kuruaya reivindicaram da Funai nova revisão dos limites do território delimitado, alegando que áreas de castanhais, seringais e cocais anteriormente explorados, assim como áreas de caça, cemitérios e moradas antigas, tinham ficado fora dos limites propostos pelo GT de 1985. Um Grupo Técnico de Trabalho iniciou em 1999 o estudo de ampliação, contando com a participação da comunidade. O levantamento fundiário de identificação e delimitação atestou: a) incidência sobre a Terra Indígena de uma ocupação não-indígena com benfeitorias edificada em uso parcial; b) possível incidência parcial de cinco registros cartoriais sem ocupação efetiva; c) possível incidência de oito requerimentos, sendo quatro de pesquisa e quatro de lavra mineral, mostrando as irregularidades nas posses. O novo limite proposto foi de 166.700 hectares e um perímetro de aproximadamente 232 Km.
O trabalho do GT concluído apontou a necessidade de continuação do Procedimento Administrativo de Regularização Fundiária da Terra Indígena Kuruaya, onde se comprovou a ocupação tradicional e histórica. Em Despacho de 27.12.2001, assinado pelo Presidente da Funai e publicado no Diário Oficial da União/Seção 1 de 28.01.2002, o Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indígena foi aprovado. No dia 30.12.2002 o Ministro da Justiça assinou portaria declarando a TI Kuruaya de posse indígena permanente, determinando que a Funai faça a demarcação jurídica e administrativa.
Quanto à presença das empresas mineradoras, frente a uma série de protestos, em 1999 somente a Brasinor se manteve na área, com uma produção de ouro bastante escassa, segundo informações dos Kuruaya.
Os Kuruaya que viviam em Altamira não tiveram melhor destino. Sobretudo a partir dos anos 1970, esse município teve um papel fundamental no processo de colonização da Amazônia, como pólo de atração das correntes migratórias de não-indígenas para a região. (sobre o histórico e a situação contemporânea dos Kuruaya citadinos, ver os itens "os Kuruaya na história de Altamira" e "Perspectivas").
Os Kuruaya na história de Altamira
A história dos Kuruaya na área que hoje compreende a cidade de Altamira começa com a chegada na região do Xingu do Padre Roque Hunderfund, da Companhia de Jesus, em 1750, responsável pela criação da “Missão Tavaquara” (ou “Itaquara”, ou “Tauaquara”), que concentrou índios Kuruaya, Xipaia, Arara, Juruna e, provavelmente outros povos que a historiografia não registrou. Essa empresa religiosa tinha, entre outros objetivos, catequizar “almas” por meio de “descimentos” forçados dos índios com o propósito de formar aldeamentos.
Com a perda do poder temporal em 1.755, pela lei Régia (decretada em 1.757), o Ministro de Portugal Marquês de Pombal expulsou a Companhia de Jesus e todos os trabalhos que por ela eram mantidos foram abandonados, inclusive a missão Tavaquara que iniciava. Mas o local não deixou de ser habitado pelos indígenas, sendo mencionado em documentos de viajantes e cientistas.
Tempos depois, uma tentativa de reestruturação da aldeia foi feita pelo Padre Torquato Antonio Souza, que apareceu na região em 1841, levando pela segunda vez a cruz em Tavaquara, que mudou o nome para “Missão da Imperatriz”; e pelos capuchinhos italianos, Frei Ludovico Mazarino e Frei Carmelino de Mazarino, por volta de 1868, sem muito sucesso.
Um registros importante da ocupação do local no século XIX foi feito pelo príncipe Adalbert da Prússia, resultado da expedição pelo Amazonas-Xingu, de 1811 a 1873. Ele aportou numa pequena ilha no rio Xingu, Arapujá, localizada em frente do que é hoje a cidade de Altamira, e de lá observou a missão Tavaquara. O príncipe fez o seguinte comentário (1977: 179):
Em meados do século anterior tinha os jesuítas fundados uma missão que, por meio da Estrada entre Tucuruí e o Anauraé, ficou numa mais próxima comunicação com Souzel e a que chamou Tavaquara (Anaquera). Infelizmente esta colônia durou pouco porque os últimos filhos de Loiola incumbidos da catequese dos Juruna pagãos, devido aos seus maus costumes que pouco se harmonizavam com o seu, talvez, excessivo zelo de catequização, depressa perderam a confiança dos indígenas em conseqüência foram por eles assassinados.
Passou-se quase um século sem que fosse possível levar a luz da fé além das cataratas, até que dois anos antes de nosso amigo eclesiástico, Pe. Torquato Antonio Souza apareceu nesta região n 1º de novembro de 1841 levando pela segunda vez a cruz em Tavaquara, dando à nova colônia o nome “Missão da Imperatriz”, o que pelo seu afável tato e larga distribuição de tigelas de porcelana, contas e miçangas, ferramentas etc...Na margem de cima reunia-se na ocasião toda a população de Tavaquara: homens, mulheres e crianças, para verem os brancos, que de alguma forma lhes estando mais próximos, nos pareciam menos estranhos”.
Além de ficar vivendo com diferentes etnias na ilha, o príncipe Adalbert visitava os índios que viviam na missão, com os quais fazia trocas. As atividades de pesca, de gateiro (caçador de gato do mato e onça para comercializar a pele) e o extrativismo continuaram a ser exercidas pelos que viviam na missão.
Os relatos dos velhos Kuruaya falam da existência e localização da missão:
juntos Juruna, Xipaia e Kuruaya vieram para a aldeia missão, quando a cidade nem chegava lá perto do igarapé Panelas; viveram distante da cidade por um bom tempo... era lá, onde tem hoje uma castanheira, pegando do barracão da Oca Mineração até a boca das Panelas, era tudo nossa terra, era muito chão” (entrevista gravada em outubro de 1999).
O território da missão compreendeu um espaço que certamente hoje não temos como mensurar, já que as fontes não indicam a extensão do que foi a aldeia, talvez um trabalho arqueológico pudesse nos dizer muito mais sobre a ocupação deste espaço, visto que recentemente derrubaram uma castanheira que era uma referência para os índios e muitos cacos de cerâmica indígena foram encontrados. Contamos apenas com as descrições do príncipe Adalbert da Prússia, que aponta a posição geográfica da aldeia como sendo ao sul, contrária ao entreposto comercial embrião da futura cidade de Altamira; e de Henry Coudreau, em sua expedição de 1896, cujos registros indicam a “Missão extinta dos padres... essa missão foi instalada na foz do igarapé Itaquari pequeno, afluente da margem esquerda [do Xingu] mais longo porém mais seco que o Panelas”. O igarapé Itaquari foi soterrado, mas o igarapé Panelas é muito utilizado e atualmente serve como referência.
Os relatos dos indígenas sobre a extensão das terras que compreendiam a missão, hoje abrange não só os limites bairro São Sebastião como também incorpora outros três bairros – Independente I, II e III –, habitados por uma população indígena e não indígena.
No início do século XX, o bairro São Sebastião era conhecido como Muquiço. No lugar, os velhos indígenas dizem que haviam botecos que eram freqüentados tanto por índios quanto por não indígenas. Quando voltavam do trabalho na cidade ou nos seringais e castanhais, faziam festas, bebiam e brigavam, principalmente nos finais de semana. Acreditam ser essa a razão do nome Muquiço. O bairro também foi conhecido como Onças, pois havia no local um galpão onde onças e gatos do mato eram aprisionados para serem vendidos no mercado de peles.
A atual configuração territorial é resultado da incorporação gradual do território indígena na cidade. O processo de colonização e organização político-territorial não seguiu os caminhos para a constituição de uma área indígena, resguardando o direito para regularização fundiária. Pelo contrário, a desterritorialização e a conseqüente perda do território, ao longo do século XX, evitou a consolidação de uma área indígena. A formação de um bairro, dentro do contexto do desenvolvimento político-social-econômico da região, teve mais força. A perda do território está atrelada à migração pendular exercida pelos ocupantes indígenas, que tinham nos rios Xingu-Iriri e Curuá locais de trabalho na primeira metade do século XX. Os homens prestavam serviços como pilotos de barcos, gateiros, extratores de castanha, do látex da seringueira e do caucho. As mulheres na cidade prestavam serviços como empregadas domésticas, lavadeiras, criadas de companhia, principalmente as mais jovens.
A maior parte desses serviços impunha uma presença intermitente no local, agravada na segunda metade do século XX pela expansão imobiliária, que resultou em dívidas impagáveis, já que os “donos” possuíam títulos no cartório. Epidemias de gripe e sarampo, que dizimaram boa parte da população, também podem ser computadas como responsáveis pela fragilidade local. E por fim, o processo de crescimento urbano, a partir da década de 1960, levou-os a sofrerem as compressões resultantes do impacto do processo de colonização, levado a efeito na região pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
A retomada de parte desse território tem sido um anseio da comunidade citadina, expresso em suas reuniões. Apesar de saberem das dificuldades, um pedido foi feito a Funai em Carta S/Nº de 09 de novembro de 2000, onde solicitaram a regularização fundiária do território. Um Grupo de Trabalho foi enviado órgão, em junho de 2001 para fazer o levantamento básico de informações sobre a área reivindicada pelos indígenas urbanos de Altamira. Os resultados indicaram a necessidade de formação de um grupo técnico para realizar a eleição de uma área para Reserva Indígena, conforme o artigo 27 da Lei 6.001/73, destinada aos índios da cidade de Altamira. . A previsão é que no primeiro semestre de 2003, um Estudo Prévio seja realizado por um antropólogo contratado pela Funai.
Organização social e política
A aldeia Cajueiro é constituída por muitas famílias nucleares ligadas por laços de parentesco próximos. As famílias moram em casas individuais e os casamentos costumam se dar entre primos Kuruaya de primeiro ou segundo grau, entre primos Kuruaya e Xipaia de primeiro ou segundo grau, ou entre Kuruaya com não-indígenas. Desde os tempos em que a região do Iriri/Curuá foi ocupada pelos senhores de seringais e castanhais, os Kuruaya estreitaram suas relações de amizade com os Xipaia e construíram fortes laços de parentesco com os seus antigos inimigos. Mas a intensidade do contato com a sociedade nacional fez com que a maior parte dos casamentos fosse realizado com os não-indígenas.
Existem dois núcleos de poder atualmente, a liderança e o cacique, que exercem diferentes trabalhos no atendimento aos interesses da aldeia. O primeiro exerce o papel de diplomata, negociando os interesses de sua comunidade; como saúde, terra, educação, legalização da associação etc.; frente aos órgãos governamentais, não-governamentais, empresas mineradoras e associações de outras etnias; além de ser o presidente da Associação do Povo Indígena Kuruaya (APIK), registrada em cartório em 2002. A relação com os parentes Kuruaya e Xipaia, que moram na cidade de Altamira, é mantida sobretudo por seu intermédio quando os problemas são compartilhados.
Já o cacique dos Kuruaya é mais jovem e tem o poder de mando quanto à organização interna do grupo. As decisões que devem ser tomadas são discutidas entre o cacique, a liderança e a comunidade na aldeia, mas quase sempre a decisão do cacique Kuruaya é a que prevalece quando não há consenso.
Ambiente e atividades produtivas
O rio Xingu pertence à Bacia Hidrográfica Amazônica. Sua nascente está no estado do Mato Grosso, onde desce em direção ao estado do Pará e chega à sua foz ao encontrar-se, pela margem direita, com o rio Amazonas. Suas águas se misturam e seguem mais um longo percurso, desembocando no oceano Atlântico. O rio Xingu, em seu trajeto dentro do Pará, tem como principais afluentes os rios Iriri e Curuá pela margem esquerda.
O regime de suas águas é equatorial perene com enchentes no verão. Os Kuruaya falam da dificuldade que é navegar no período de água baixa, pois a quantidade de pedras que aparece pode destruir os barcos lotados de mercadorias, ou fazê-los carregar os barcos pequenos enquanto caminham a pé por longos percursos.
Na região do Xingu, dominam pequenas ilhas de floresta tropical densa (florestas umbrófilas), floresta tropical aberta (florestas umbrófilas abertas de palmeiras e floresta secundária cipó ou bambu (Projeto RADAM Brasil, 1992). A Terra Indígena Kuruaya localiza-se em região de tipo climático que corresponde às florestas tropicais com chuvas do tipo monções. Os próprios Kuruaya classificam a floresta como local de terras altas; também conhecido como chapada; mata limpa ou castanhal; mata cerrada ou cerrado; baixão, igapó ou vale do rio; vale de grota ou vales de igarapés; e carrasco ou terreno pedregoso.
O potencial agrícola do solo é de fertilidade média, o que é resolvido pelos Kuruaya com uma agricultura itinerante, onde utilizam a técnica de roça de toco, ou sistema de coivara, que dá tempo para o solo voltar a ser fértil. O período de descanso permite a formação de nova capoeira e a madeira que apodrece no local mais a diversidade de plantações já cultivadas recuperam a terra.
A agricultura é uma das principais atividades e o cultivo da mandioca brava, para a produção da farinha, está ligado à produção do milho, fava, arroz, macaxeira, cará, batata-doce, inhame, abóbora. Algumas frutas também são cultivadas, como melancia, banana, cana de açúcar, mamão e abacaxi. O objetivo dos Kuruaya é de plantar também cacau e feijão, extrair óleo de copaíba e coletar sementes de toda espécie. A fase de preparo do solo broca, derruba, queima e coivara e a fase de plantação, manutenção e colheita são realizadas pelos homens; entretanto, mulheres e crianças também participam da capina, plantio e colheita. Nos meses de junho a novembro fazem a abertura das roças, iniciam o plantio, colhem as roças antigas, ficando para o inverno, que é o período de chuvas de dezembro a maio, o trabalho na colheita.
Ao redor da aldeia os Kuruaya cultivam árvores frutíferas, como mangueira, bananeira, goiabeira, cajueiro, mamoeiro, abacateiro, graviola e urucu. Nos agrupamentos familiares, como Favela, é mantido um pomar contendo acerola, abacate, ata, cupi, graviola, laranja, mexerica, uva, goiaba, jaca, pé de chapéu, lima e abacaxi. São mantidos também, canteiros suspensos ou cercados no chão, nas aldeias e nos agrupamentos familiares, com plantas para tempero e ervas medicinais. As ervas mais usadas são vick, mastruço, gengibre, arruda, hortelã, cidreira, malva grossa, alfavaca e babosa. De algumas árvores, como jatobá, goiabeira e castanheira, os Kuruaya extraem seiva, casca, folhas, raízes, flores para a produção de chás, melados e outros para o tratamento de diferentes doenças. Usam também leguminosas como o cumaru.
Os velhos Kuruaya lembram que a pesca é praticada durante todo o ano e os peixes apreciados são: traíra, trairão, mandi, piranha branca, babão (peixe que parece o tucunaré), piau, curimatá, pacu, pescada, surubim fidalgo, filhote, pintadinho, piranha, cadete e matrinxã. As águas do rio Curuá permanecem ricas em peixe e continua sendo fonte de alimento para a população da aldeia. Os instrumentos utilizados para pescar são: anzol também chamado de tela, facão, lança curta e arco e flecha, este mais utilizado pelos mais velhos. Muito raramente os Kuruaya utilizam a malhadeira, o caniço, o cacuri ou curral para peixe, o jequi ou cesto para pesca. Essa atividade não é exclusiva dos homens, sendo também realizada algumas vezes pelas mulheres e crianças.
A atividade da caça é outra fonte de alimento que permanece sendo praticada. O veado, mutum, tatu, macaco e capivara são bastante apreciados. Atividade essencialmente masculina, exige organização, planejamento e conhecimento dos hábitos do animal a ser caçado. Os instrumentos utilizados são a espingarda, flecha, arco, lança e borduna, mas também não dispensam o auxílio de um bom cachorro caçador e de armadilha. Outro alimento que os Kuruaya se referem constantemente é a coleta de ovos de tracajá e o consumo de sua carne para completar a alimentação.
Perspectivas
O que é ser indígena urbano? Em que se pauta a diferença, quando a cidade é o lugar de morada? As duas questões podem ser entendidas pelo reconhecimento étnico e pela territorialidade. O reconhecimento étnico urbano não está pautado na terra, na cultura material ou na carga genética e sim no auto-reconhecimento e reconhecimento pelos pares e pelos outros, os não-índios. Em Altamira, oa índios fazem parte da paisagem sócio-cultural há mais de dois séculos, andam pelas ruas da cidade, fazem compras, vão ao banco e realizam todo tipo de negócio, como qualquer habitante.
Ter um projeto político comum pode ajudar a construir a identidade grupal. A partir da segunda metade da década de 1990 esta compreensão passou por redefinições e ampliações, pois os indígenas urbanos buscaram uma forma mais organizada para reivindicar alguns direitos. A atuação individual e solitária toma outros rumos quando se organizam no Movimento dos índios Moradores de Altamira e, posteriormente, se transformam em Associação dos Índios de Altamira (AIMA), legalizada em 2001. Os novos desafios passam por conseguir um lugar para a associação funcionar com o mínimo de infra-estrutura e treinamento para aprenderem manipular seus mecanismos bucrocráticos.
No dia 12/10/99, no evento "Grito dos excluídos da América Latina", organizado pelo CIMI, os indígenas se apresentaram para a cidade de Altamira. Conseguiram aprender com os mais velhos o canto, dança e confeccionar suas roupas com fibras de buriti e sarrapilheira, que foram pintadas com mistura de jenipapo verde pisado e misturado com casca de cajá, transformada em carvão. A apresentação obteve resultados bastante positivos, mostrou que o projeto comum era viável e que instituições, como Funai - que até então sabia que existiam, mas não os reconhecia -, Funasa, Secretaria de Educação, Prefeitura Municipal, Conselho Tutelar e Delegacia de Polícia percebiam que havia uma outra parcela social indígena que possuía os mesmos anseios dos cidadãos não indígenas e que não podiam ignorar suas presenças.
O final dos anos 1990 ficou marcado pela busca do reconhecimento étnico em Altamira, expresso pelas reivindicações e conquistas feitas em torno da saúde, primeiro para a melhoria do atendimento na casa de saúde indígena para os aldeados; segundo, a necessidade de fazer o levantamento das crianças indígenas que estavam sem registro, adultos sem carteira de identidade, carteira de trabalho, título de eleitor, CPF, aposentadoria, levantamento do número de índios urbanos e ribeirinhos e terceiros à necessidade de inclusão dos índios urbanos no atendimento dentro do projeto/Convênio entre FUNASA e Prefeitura de Altamira. Posteriormente, as ações da liderança urbanas levam ao conhecimento de outros movimentos indígenas suas experiências, nos encontros, seminários e assembléias.
A provável realização de um Estudo Prévio no primeiro semestre de 2003 trouxe algumas esperanças de terem uma terra em Altamira, que envolve um processo bem diferente do que ocorre numa situação quando a terra a identificar é na floresta.
Quanto aos Kuruaya aldeados, hoje estão certos que a reconquista de suas terras, além de assegurar um futuro melhor para seus filhos, recuperou a auto-estima do grupo e reavivou sua identidade étnica. Mas também estão cientes que ainda há um longo caminho a ser percorrido. A criação da Associação do Povo Indígena Kuruaya (APIK), como entidade jurídica, trouxe esperança de aprimorar os mecanismos de negociação com outras instituições governamentais ou não-governamentais, particularmente no que concerne ao financiamento de seus projetos. No final de 2002, os Kuruaya estavam na expectativa de terem os projetos de cultivo de cacau e feijão aprovados.
A construção de outra aldeia também está prevista, como forma de ocuparem lugares estratégicos da Terra Indígena e de alocarem novos centros de poder que vão se configurando. A associação criou uma certa mobilidade política-social entre alguns indivíduos, na medida em que passaram a debater questões tanto dentro quanto fora de sua aldeia e se tornaram conhecedores das atividades que envolvem os projetos que visam financiamento.
Tanto no caso dos aldeados como também dos urbanos, a necessidade de escolarização e formação é urgente. Um projeto para atender a esta demanda está sendo desenvolvido pela Universidade Federal do Pará em parceria com o MEC, AIMA e o Departamento de Educação da Funai em Brasília e em Altamira.
Fontes de informação
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